Voltei para casa sem avisar. Depois de cumprir minha última missão, descobri que meu filho agonizava sozinho na sala de cuidados intensivos. Enquanto isso, minha nora festejava com os amigos num iate no Mar do Algarve. Congelei todas as contas imediatamente. Uma hora depois, ela enlouqueceu ao saber.
Me alegro que você esteja aqui. Fique até o fim e me diga de qual cidade você vê minha história. Quero saber até onde ela chegou. Pisei no Aeroporto Internacional de Lisboa quando o sol começava a nascer, com uma luz dourada atravessando os vidros da terminal.
Minha velha mala militar, desgastada nos cantos, descansava aos meus pés como uma companheira fiel de viagem por mais de 40 anos. No meu pulso, o relógio de bolso do meu pai vibrava suavemente a cada movimento, como se me lembrasse da promessa que fiz na minha juventude. Sempre voltar para casa. Essa promessa pesava mais do que nunca. Agora.
Aos 61 anos, recém-aposentada após minha última missão, havia dedicado minha vida inteira aos fuzileiros navais de Portugal. Desde operações de resgate de reféns no Porto até dias intermináveis evacuando pessoas durante aquele terremoto devastador no Algarve. Mas hoje, eu só queria ser mãe. Ansiosa para abraçar o Tiago, meu filho.
Depois de tantos anos, arrastei a mala para fora da área de bagagens com a mesma rapidez e precisão de sempre. Lá fora, o sol da manhã já começava a queimar. Levantei a mão para chamar um táxi. Subi e disse ao motorista: “Rua das Palmeiras, número 420, por favor.” Tentei manter a voz calma, mas por dentro a emoção batia como as ondas do mar ali perto.
Imaginava o Tiago abrindo a porta com um sorriso radiante, sentando à mesa e falando de tudo o que eu havia perdido. Em meia hora, estaria com meu filho novamente. O rádio tocava notícias da Marinha, relatórios que eu costumava ouvir todos os dias, mas que agora não significavam nada para mim.
Ontem terminara minha última missão como consultora estratégica da NATO numa operação antiterrorista na América do Sul. Quarenta anos de carreira, desde conter contrabando de armas na fronteira até noites em claro na selva. Tudo ficava para trás como memórias distantes. Olhei pela janela em silêncio. O oceano azul se estendia infinito. As ondas brilhavam, como se quisessem me arrastar de volta para aqueles dias.
Mas minha mente estava só com o Tiago e a pequena casa onde depositei tantas esperanças. O táxi seguiu pela estrada costeira que eu conhecia bem, onde as palmeiras ainda balançavam, iguais ao dia em que parti. Mas quando parou em frente à casa do Tiago, senti um aperto no peito. A casa estava escura, as cortinas fechadas. Nenhuma luz acesa.
Subi a mala até o alpendre. Uma inquietação crescia dentro de mim. Toquei a campainha. O som ecoou no silêncio, sem resposta. Bati na porta mais forte. Nada. Um silêncio estranho, como se a casa estivesse abandonada. Desci ao jardim e olhei ao redor. A caixa de correio estava cheia de panfletos amassados.
Eles se amontoavam no chão, como se ninguém tivesse limpado há muito tempo. Meu coração acelerou. Um pressentimento sombrio me apertava o peito. Eu mandava dinheiro religiosamente para o Tiago e para a Carolina, minha nora, para manter a família. Acreditava que tudo estava bem, que meu filho vivia sem problemas.
Mas agora, diante daquela casa gelada, eu me perguntava o que estava acontecendo. Nesse momento, vi a Dona Margarida, vizinha do Tiago, regando flores do outro lado da rua. Ela morava ali desde que eu era jovem, sempre gentil, contando histórias sobre as crianças do bairro. Gritei: “Dona Margarida!” Ela levantou a cabeça, os olhos arregalados de surpresa.
“Valentina! Meu Deus, você voltou. Mas você não soube de nada.” Corri até ela, as pernas quase falhando ao ouvir sua voz. “Souber de quê? Onde está o Tiago?”, perguntei, tentando não deixar a voz fraquejar. Dona Margarida deixou o regador no chão, o olhar cheio de pena. “O Tiago está há duas semanas no Hospital de Santa Maria. A ambulância veio no meio da noite. Eu vi o logo no carro.”
Parou, depois continuou mais baixo: “E a Carolina… meu filho viu uma publicação dela nas redes sociais. Está num iate no Algarve.” Fiquei paralisada, como se o mundo tivesse desabado sob meus pés. Tiago no hospital. Duas semanas. E Carolina, minha nora, em quem confiei para cuidar dele, festejando num iate.
Senti o sangue parar nas veias, o coração batendo em pontadas dolorosas. “Você sabe onde fica o Hospital de Santa Maria?”, perguntei com voz rouca. Dona Margarida acenou que sim e me indicou o caminho. Sem pensar, corri para a rua e parei outro táxi. “Hospital de Santa Maria. O mais rápido possível”, disse ao motorista, quase em tom de ordem.
Dezenas de perguntas se amontoavam na minha mente. O que acontecera com meu filho para precisar de urgência? E minha nora? Como podia estar numa festa luxuosa enquanto meu filho estava doente no hospital?
Sentada no táxi, sentia o coração queimar no peito. Apertei o relógio de bolsillo com tanta força que meus nós dos dedos ficaram brancos. Tiago, meu filho, o menino que corria atrás de mim na praia, que me abraçava toda vez que eu voltava das minhas longas missões. Agora estava num hospital. E eu, a mãe que dedicou a vida a proteger o país, nem sabia que ele me precisava.
Culpava-me pelos meses e anos, enviando apenas dinheiro, achando que bastava para que ele tivesse uma boa vida. Mas agora eu só queria chegar ao Tiago, vê-lo, saber que ele estava vivo, que estava bem.
O táxi parou em frente ao Hospital de Santa Maria, e o sol do meio-dia me cegou. Paguei ao motorista, arrastei minha mala pela entrada e tentei controlar a respiração para não sucumbir ao pânico que ameaçava me dominar.
O saguão estava lotado, vozes, passos, o alto-falante chamando pacientes como uma música caótica. Fui direto para a recepção, onde uma jovem enfermeira revisava prontuários. “Estou procurando por Tiago Mendes”, disse, a voz seca, como se cada palavra custasse um esforço enorme.
A enfermeira ergueu o olhar, me estudou por um instante e folheou rapidamente alguns papéis. “Está na UTI. Quinto andar, quarto 512”, respondeu num tom mecânico, como se fosse só mais um aviso na rotina. Nem tive tempo de agradecer e corri para o elevador. “Espere, por favor!”, gritei quando as portas começaram a fechar.
Um homem de meia-idade esticou a mão para segurá-las e me deixou entrar. O cheiro forte de desinfetante me atingiu, e tive que conter o enjoo. Quando as portas se abriram no quinto andar, o corredor da UTI era frio e silencioso, interrompido apenas pelo som constante dos equipamentos médicos.
Caminhei rápido, minhas velhas botas militares ecoando no piso de ladrilhos. A porta do quarto 512 estava entreaberta, uma luz branca escapando por dentro, fazendo-me hesitar por um segundo. Empurrei devagar, como se temesse quebrar algo frágil.
Tiago estava lá, na camaNaquela cama branca, cercado de tubos e máquinas, o sorriso do meu filho já não existia, mas o amor que senti por ele jamais se apagaria.