O frio daquela manhã de outono sentia-se diferente. No Porto, o vento costumava trazer um cheiro metálico, mistura de fumo e asfalto, mas naquele dia o ar cheirava a vazio. Eduardo Monteiro, diretor da funerária Paz Eterna, passara mais de duas horas sentado na pequena capela. À sua frente, um caixão branco permanecia imóvel, como suspenso no tempo. Dentro, repousava o corpo de Pedro Vaz, um menino de apenas dez anos que morrera no dia anterior, vítima de leucemia.
Eduardo já vira mil despedidas: funerais faustosos, modestos, caóticos e até grotescos. Mas o que nunca vira era um funeral onde ninguém aparecia. O rapaz fora criado pela avó, a única que o visitava durante a doença. E o destino, cruel como poucas vezes, decidira levá-la também: um enfarte deixou-a nos cuidados intensivos no mesmo dia do enterro do neto.
Os Serviços Sociais já assinara os papéis. A família de acolhimento que o tivera por pouco tempo lavou as mãos. A paróquia recusou-se a oficiar o serviço porque “não podiam associar-se ao filho de um assassino”. E a funerária, apesar do dever, estava prestes a enterrar Pedro num nicho municipal anónimo, apenas com um número por lápide.
Eduardo, com lágrimas contidas, pegou no telefone. Um nome vinha-lhe à mente: Rui “O Zarolho”, um velho conhecido, líder dos Cavaleiros do Norte, um clube de motards da cidade. Tratara com ele anos atrás, quando a sua esposa morrera de cancro. Os motards escoltaram o cortejo por amizade e respeito. E agora, Eduardo sentia que o único capaz de entender aquela injustiça era ele.
— Rui, preciso de ajuda — disse, com voz trémula.
— Que se passa, Eduardo? — respondeu o motard, ainda com o café fumegante na mão.
— Tenho aqui um menino… morreu de leucemia. Ninguém veio despedir-se. E ninguém virá.
Rui franziu a testa, apertando os dentes.
— Menino de acolhimento?
— Pior — suspirou Eduardo. — É filho do Marco Alves.
Esse nome bastava. Todos o conheciam. Marco Alves, um homem marcado pela violência, cumpria prisão perpétua por um homicídio triplo num acerto de contas. O seu rosto aparecera em todos os telejornais. E agora, o filho inocente estava prestes a ser enterrado como se nunca tivesse existido.
— Eduardo, esse miúdo não escolheu o pai. Espera por mim duas horas.
— Só preciso de quatro pessoas para carregar o caixão…
— Terás mais do que quatro.
Rui desligou. Dirigiu-se à sala do clube, onde trinta e sete homens bebiam, riam ou afinavam motores. Subiu a uma mesa e falou:
— Irmãos, há um menino de dez anos que será enterrado sozinho porque o pai está na prisão. Morreu de cancro. Ninguém o reclama, ninguém o chora. Eu vou ao funeral dele. Não obrigo ninguém. Mas se acham que nenhuma criança deve partir sozinha, acompanhem-me à Paz Eterna em noventa minutos.
O silêncio pesou. O primeiro a falar foi Velho Lobo:
— O meu neto tem dez anos. Vou contigo.
Martelo assentiu:
— O meu também.
Toni, com voz trémula, murmurou:
— O meu filho teria dez se o bêbado daquela noite não… — e não conseguiu terminar.
Foi então que Zé Manel, líder histórico dos Cavaleiros, levantou-se:
— Chamem os outros clubes. Todos. Isto não é de territórios nem de rivalidades. É de um menino.
As chamadas voaram. Águias da Noite. Lobos de Ferro. Diabos do Asfalto. Até clubes com desavenças de anos. Todos disseram o mesmo:
— Lá estaremos.
O rugido das motas
Eduardo não compreendia o que se passava. Às duas da tarde, o estacionamento da funerária vibrava com um rugido ensurdecedor. Trezentas e doze motas enchiam não só o parque, como três ruas em redor. Homens e mulheres com casacos de cabedal, emblemas bordados e capacetes reluzentes desciam, um a um.
Quando a porta da capela se abriu, Eduardo conteve a respiração. Dentro, um pequeno caixão branco aguardava. Ao lado, um humilde ramo de flores do supermercado. Nada mais.
— É só isto? — perguntou Cobra, um dos motards mais rijos.
— As flores são do hospital — admitiu Eduardo. — Protocolo.
— Que se lixe o protocolo — rosnou alguém.
Um a um, os motards passaram diante do caixão. Homens durões, com lágrimas nos olhos, deixaram pequenas oferendas: um peluche, uma mota de brincar, flores, até um casaco de cabedal infantil com o bordado “Cavaleiro Honorário”.
Mas foi Lápide, um veterano das Águias, que partiu o coração de todos. Tirou uma foto amarfanhada e colocou-a junto ao caixão.
— Este era o meu miúdo, João. Tinha a mesma idade quando a leucemia mo levou. Não o salvei. Mas agora, Pedro, não estás sozinho. O João vai mostrar-te o caminho lá em cima.
As lágrimas correram. Ninguém conhecia Pedro, mas todos falavam como se fosse seu. E, de alguma forma, era.
A chamada inesperada
De repente, o telemóvel de Eduardo vibrou. Atendeu e ficou pálido.
— É da prisão — murmurou.
Todos o olharam.
— O Marco Alves… soube. Da morte do filho. Estão a vigiá-lo porque acham que tentará suicidar-se. Pergunta se alguém veio ao funeral.
A capela caiu em silêncio. Zé Manel avançou:
— Põe-no em alta-voz.
A voz de Marco soou quebrada, quase irreconhecível:
— Está aí alguém? Alguém veio pelo meu menino?
Rui respirou fundo.
— Sim, Marco. Estamos aqui. Mais de trezentos. Ele não está sozinho. O teu filho teve a despedida que merecia.
Um soluço atravessou o telefone. O homem que fora temido nas ruas chorava como uma criança.
— Obrigado… Não sei como agradecer. Eu não estive… falhei.
— O teu filho perguntava se ainda o amavas — disse Zé Manel, com voz firme. — E hoje temos de te dizer: sim, amavas. E ele soube, porque não partiu sozinho.
Marco calou-se. Depois, com a voz destruída, sussurrou:
— Vocês salvaram mais do que o meu filho. Salvaram-me a mim.
O cortejo
O caixão foi carregado entre aplausos e motas a rugir em uníssono. O pequeno caixão branco, nos ombros de oito motards, percorreu a rua escoltado por centenas de motocicletas. As pessoas saíam das casas, espreitando das varandas, perguntando quem seria aquele menino capaz de unir tantos.
No cemitério municipal, o nicho anónimo esperava. Mas os motards não permitiram. Entre todos, juntaram dinheiro em minutos, notas amassadas e generosas. Compraram uma lápide digna, com o nome gravado:
Pedro Vaz
2015 – 2025
Amado e lembrado por muitos.
Nunca sozinho.
Epílogo
Os jornais falaram no dia seguinte: “Centenas de motards despedem-se de menino esquecido”. Uns viram-no como um acto de redençãoE, na cela, Marco Alves guardou a última carta escrita ao filho no bolso do coração, prometendo viver o que Pedro não pôde.