Uma Criança Nunca Fica Sozinha

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O frio daquela manhã de outono sentia-se diferente. Em Lisboa, o vento costumava trazer um cheiro metálico, mistura de fumo e asfalto, mas naquele dia o ar cheirava a vazio. Eduardo Mendes, diretor da funerária Paz Eterna, passara mais de duas horas sentado na pequena capela. À sua frente, um caixão branco permanecia imóvel, como suspenso no tempo. Lá dentro, estava o corpo de Tiago Silva, um rapaz de apenas dez anos que morrera no dia anterior, vítima de leucemia.

Eduardo já vira mil despedidas: funerais luxuosos, modestos, caóticos e até grotescos. Mas o que nunca vira era um funeral onde ninguém aparecia. O miúdo fora criado pela avó, a única que o visitara durante a doença. E o destino, cruel como poucas vezes, decidira levá-la também—um enfarto deixou-a na UCI no dia anterior ao enterro do neto.

Os Serviços Sociais já tinham assinado os papéis. A família de acolhimento que o recebera por pouco tempo lavou as mãos. A paróquia recusou-se a celebrar o serviço porque “não podiam associar-se ao filho de um assassino”. E a funerária, apesar do seu dever, preparava-se para enterrar Tiago num jazigo municipal anónimo, com apenas um número por lápida.

Eduardo, com lágrimas contidas, pegou no telefone. Havia um nome que lhe vinha à mente: Zé “O Caolho”, um velho conhecido, presidente dos Cavaleiros do Tejo, um clube de motoqueiros da cidade. Lidara com ele anos atrás, quando a esposa morrera de cancro. Os motoqueiros haviam escoltado o cortejo fúnebre por amizade e respeito. E agora, Eduardo sentiu que o único capaz de entender aquela injustiça era ele.

“Zé, preciso de ajuda,” disse, com voz trémula.
“O que se passa, Eduardo?” respondeu o motoqueiro, ainda com o café fumegante na mão.
“Tenho um miúdo aqui… morreu de leucemia. Ninguém veio despedir-se. E ninguém virá.”

Zé franziu a testa, cerrando os dentes.
“Miúdo de acolhimento?”
“Pior,” suspirou Eduardo. “É filho do Marco Silva.”

Aquele nome bastava. Todos o conheciam. Marco Silva, um homem marcado pela violência, cumpria prisão perpétua por um triplo homicídio num ajuste de contas. O seu rosto aparecera em todos os telejornais. E agora, o filho inocente estava prestes a ser enterrado como se nunca tivesse existido.

“Eduardo, aquele miúdo não escolheu o pai. Espera duas horas.”
“Só preciso de quatro homens para carregar o caixão…”
“Terás mais do que quatro.”

Zé desligou. Dirigiu-se à sala do clube, onde trinta e sete homens bebiam, riam ou ajustavam motores. Subiu a uma mesa e falou:

“Irmãos, há um miúdo de dez anos que vai ser enterrado sozinho porque o pai está na prisão. Morreu de cancro. Ninguém o reclama, ninguém o chora. Eu vou ao funeral dele. Não obrigo ninguém. Mas se acham que nenhuma criança deve partir sozinha, acompanhem-me à Paz Eterna em noventa minutos.”

O silêncio pesou. O primeiro a falar foi o Velho Urso:
“O meu neto tem dez. Vou contigo.”

Martelo assentiu:
“O meu também.”

Ron, com voz trémula, murmurou:
“O meu filho teria dez se o bêbado daquele carro não…” e não conseguiu acabar.

Foi então que o Gigante, presidente histórico dos Cavaleiros, levantou-se:
“Liguem aos outros clubes. A todos. Isto não é de territórios nem de rivalidades. É de uma criança.”

As chamadas voaram. Águias do Norte. Cavaleiros de Ferro. Demónios do Asfalto. Até clubes com rancores de anos. Todos disseram o mesmo:
“Estaremos lá.”

O rugido das motas
Eduardo não acreditava no que via. Às duas da tarde, o estacionamento da funerária vibrava com um rugido ensurdecedor. Trezentas e doze motas enchiam não só o parque, mas três ruas ao redor. Homens e mulheres com casacos de couro, emblemas bordados e capacetes reluzentes desciam, um a um.

Quando a porta da capela se abriu, Eduardo conteve a respiração. Lá dentro, um pequeno caixão branco esperava. Ao lado, um modesto ramo de flores de supermercado. Nada mais.

“Isto é tudo?” perguntou Cobra, um dos motoqueiros mais durões.
“As flores são do hospital,” admitiu Eduardo. “Protocolo.”
“Que se lixe o protocolo,” rosnou alguém.

Um a um, os motoqueiros passaram pelo caixão. Homens rudes, com lágrimas nos olhos, deixaram pequenas oferendas: um peluche, uma mota de brinquedo, flores, até uma jaqueta de couro infantil bordada com “Cavaleiro Honorário”.

Mas foi Lápide, um veterano das Águias, quem partiu o coração de todos. Tirou uma foto amarfanhada e colocou-a junto ao caixão.
“Este era o meu filho, João. Tinha a mesma idade quando a leucemia o levou. Não consegui salvá-lo. Mas agora, Tiago, não estás sozinho. O João vai mostrar-te o caminho lá em cima.”

As lágrimas correram. Ninguém conhecia Tiago, mas todos falavam como se fosse seu. E, de alguma forma, era.

A chamada inesperada
De repente, o telemóvel de Eduardo vibrou. Atendeu e empalideceu.
“É da prisão,” murmurou.
Todos olharam.
“O Marco Silva… ficou a saber. Da morte do filho. Estão a vigiá-lo porque acham que vai tentar… pergunta se alguém veio ao funeral.”

A capela ficou em silêncio. O Gigante adiantou-se:
“Põe em altifalante.”

A voz de Marco soou quebrada, quase irreconhecível:
“Olá? Há alguém? Alguém veio pelo meu miúdo?”

Zé respirou fundo.
“Sim, Marco. Estamos aqui. Mais de trezentos. Ele não está sozinho. O teu filho teve a despedida que merecia.”

Um soluço ecoou pelo telefone. O homem que fora temido nas ruas chorava como uma criança.
“Obrigado… não sei como agradecer. Eu não estive… eu falhei.”
“O teu filho perguntava se ainda o querias,” disse o Gigante, firme. “E hoje, cabe-nos a nós dizer-te: sim, querias. E ele soube, porque não partiu sozinho.”

Marco calou-se. Depois, com a voz destruída, sussurrou:
“Vocês salvaram mais do que o meu filho. Salvaram-me a mim.”

O cortejo
O caixão foi carregado entre aplausos e motas a rugir em uníssono. O pequeno féretro branco, nos ombros de oito motoqueiros, percorreu a rua escoltado por centenas de motocicletas. As pessoas saíam das casas, espreitavam das varandas, perguntando-se quem seria aquele miúdo capaz de unir tantos.

No cemitério municipal, o jazigo anónimo esperava. Mas os motoqueiros não permitiram. Entre todos, juntaram dinheiro em minutos, notas amarrotadas e generE no fim, enquanto o último motor se afastava, Eduardo olhou para o céu e percebeu que, às vezes, até nas histórias mais tristes, há um fio de esperança que nos lembra que ninguém está verdadeiramente sozinho.

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