Uma Cidade Cega à Dor. Até Que Chegaram Os Motociclistas.

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**16 de Novembro de 2023**

A vila de Serpa-Branco, no Alentejo, orgulhava-se de duas coisas: a vista imaculada da Serra d’Ossa e a suposta retidão moral dos seus habitantes. A placa à entrada, pintada com letras antigas num tom acolhedor, dizia: *”Serpa-Branco: Um Bom Lugar para Viver.”* Aos domingos, a torre branca da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, liderada pelo afável Padre João Almeida, era o centro do universo. Nos dias de semana, o Presidente da Câmara, Rui Cardoso, reinava no Café Central, com uma chávena de café permanentemente colada à mão.

Era uma vila construída sobre aparências. As pessoas cumprimentavam-se. Contribuíam para o bazar anual. E murmuravam, em tom preocupado, sobre os *”menos afortunados”*—que, em Serpa-Branco, era um termo elegante para a Joana e a Maria, que moravam no Bairro das Oliveiras, na periferia.

Joana era a tragédia designada da vila, uma mulher consumida pela crise dos opiáceos que varreu o interior de Portugal como um incêndio. Mas Maria, de nove anos, era a consequência viva e respirante.

Maria sofria de Displasia do Desenvolvimento do Quadril (DDQ) grave e não tratada. O que poderia ter sido corrigido com uma simples órtese na infância tornara-se, após anos de negligência, uma deformidade debilitante. A perna esquerda oscilava num arco descontrolado, e a articulação direita rangia osso contra osso. Caminhava com um passo doloroso e desequilibrado, cada movimento uma nova humilhação.

Os *”bons cidadãos”* de Serpa-Branco viam-na. Viam-na mancar do autocarro escolar velho. Viam-na lutar para acompanhar as outras crianças, que já haviam aprendido a excluí-la das brincadeiras.

Dona Carmo, dona da Mercearia Carmo, observava Maria a arrastar-se pelo corredor, as mãos pequenas a segurar uns vales de alimentação, e suspirava. *”Que pena,”* murmurava ao próximo cliente. *”Aquela menina. Tal e qual como a mãe.”*

O Padre Almeida visitara o barraco uma vez. Deixara uma Bíblia e um panfleto de um programa de recuperação em cima da mesa manchada da Joana, cuidadosamente evitando o lixo espalhado pelo chão. Acariciara Maria na cabeça, desviando os olhos do ângulo doloroso das suas pernas, e dissera: *”Estamos todos a rezar por ti, filha.”*

Mas as orações não aliviavam a dor no seu quadril. A pena não parava o ranger constante. A vila dera-a como perdida, uma história triste para ser lamentada entre cafés, mas não um problema a ser resolvido. Era *”gente do bairro,”* e em Serpa-Branco, alguns problemas eram considerados além da redenção.

Numa quarta-feira gélida de novembro, com o vento a trazer o primeiro sinal do inverno, Maria tinha uma missão. A mãe estava *”doente”*—aquela doença cinzenta e trémula que a deixava a chorar ou a gritar. Mas estavam sem refrigerante, e a Joana gritara até Maria encontrar quatro euros amassados no fundo de uma carteira.

Era um quilómetro inteiro do Bairro das Oliveiras até ao Posto de Gasolina Tejo. Para Maria, era uma peregrinação agonizante. Cada passo desencadeava uma pontada de dor do quadril até ao joelho. Caminhava pelo acostamento, a cabeça baixa, o casaco fino aberto até ao nariz. Parecia um passarinho ferido, arrastando uma asa pelo caminho.

Conseguiu entrar, o sino da porta a tilintar. O empregado, um adolescente, mal ergueu os olhos do telemóvel. Maria agarrou uma lata de sumo do refrigerador. As mãos estavam dormentes de frio. Ao chegar ao balcão, a lata escorregou-lhe dos dedos.

Caiu no chão de linóleo e rolou.

Maria ficou a olhar para ela, os olhos a encher-se de lágrimas quentes de frustração. Era só uma lata de sumo, mas naquele momento, parecia um obstáculo intransponível. Agachar-se significava deslocar o peso, e isso significava fogo no quadril. Tentou baixar-se, mas um estalo agudo na articulação fez-la gritar de dor.

Era só uma menina, a chorar no meio de um posto de gasolina, incapaz de apanhar uma lata de sumo.

O sino da porta tilintou novamente, desta vez deixando entrar uma rajada de ar frio e o cheiro pesado de couro, gasolina e poeira.

O empregado olhou para cima, os olhos arregalados.

Eram homens grandes. Os coletes de couro—*”cuts,”* como lhes chamavam—exibiam um remendo: uma caveira com um capacete de combate, cruzada por uma espingarda e uma chave inglesa, com as palavras *”Os Filhos Esquecidos”* em arco por cima. Eram um clube de motociclistas, na maioria veteranos de guerra, das campanhas de África até ao Afeganistão. Pareciam duros, intimidantes, e completamente deslocados na pacata Serpa-Branco.

O líder, um homem com um peito largo como um frigorífico e uma barba grisalha entrançada em duas partes, avançou. Chamava-se Mário *”Touro”

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