O vento outonal em Coimbra trazia o cheiro das folhas queimadas quando o Cabo Manuel Sousa finalmente desceu do autocarro. O uniforme estava engomado, mas desbotado, as botas gastas pelas areias do deserto no Afeganistão. Foram quase dois anos longe, contando os dias até reencontrar a família. Mas quando chegou à pequena casa na Rua dos Lírios, o que o esperou não foi o abraço caloroso da mulher, mas algo que lhe torceu o estômago.
O jardim estava abandonado, a erva alta, a caixa do correio entupida de publicidade velha. Na varanda, a filha de nove anos, Beatriz, abraçava o irmão mais novo, o pequeno Tomás de quatro anos. À frente deles, um grande cão Serra da Estrela, o Bóris, permanecia alerta, o corpo tenso como se protegesse as crianças.
“Pai?” A voz de Beatriz falhou ao levantar-se, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Tomás seguiu-a, tropeçando nos braços de Manuel. Ele deixou cair o saco militar e apertou-os com força, mas, mesmo naquele momento de reencontro, os seus olhos procuravam a esposa, a Joana.
“Onde está a tua mãe?”, perguntou baixinho.
Beatriz hesitou, depois baixou o olhar. “Ela foi-se embora, pai. Há muito tempo.”
As palavras atingiram Manuel como uma bala. Joana prometera que manteria a família unida enquanto ele servia. Mas o que Beatriz disse a seguir cortou ainda mais fundo.
“Ela foi-se com um homem. Nunca voltou. Eu tive de cuidar do Tomás. O Bóris ajudou-me.”
Manuel sentiu uma onda de raiva e desgosto, mas conteve-se pelos filhos. A pequena Beatriz, com apenas nove anos, fora forçada a ser mãe. O filho, ainda um bebé, tivera apenas uma irmã mais velha e um cão leal como escudo. A traição da mulher ardia nele, mas a visão dos filhos magros e com olhos cansados acendeu algo mais forte—determinação.
Levou-os para dentro, onde a casa contava a sua própria história. O frigorífico quase vazio, com apenas um pouco de leite e ovos. A pilha de loiça na bancada. As roupas das crianças mal dobradas, sinal das mãozinhas de Beatriz a tentar o seu melhor. Tomás agarrava um urso de peluche gasto, os olhos cheios de um medo que nenhuma criança deveria conhecer.
Naquela noite, depois de os deitar, Manuel sentou-se à mesa da cozinha, a olhar para a tinta a descascar das paredes. Bóris deitou-se a seus pés, alerta. O militar sentia-se mais destroçado ali do que em qualquer campo de batalha. Enfrentara insurgentes, bombas, perigo sem fim, mas aquilo… aquela traição, esse abandono, era uma ferida mais profunda que qualquer cicatriz.
Prometeu então que reconstruiria tudo. Por Beatriz, por Tomás, e por si mesmo.
Na manhã seguinte, levou-os à escola no seu velho Renault. Beatriz insistira que mantivera os estudos, mas ele via o cansaço no seu rosto. As professoras receberam-no com surpresa e alívio, contando como Beatriz fora incrivelmente responsável—levando Tomás à creche todos os dias, indo às aulas, até fazendo biscates como tomar conta de crianças ou passear cães para comprar comida.
Manuel cerrou o maxilar. A filha fora uma soldado à sua maneira, lutando uma guerra que nenhuma criança deveria enfrentar.
Em casa, começou a juntar as peças. Contas por pagar, serviços em atraso, até um aviso de execução hipotecária. Joana não só partira—abandonara toda a responsabilidade, deixando a família à beira do colapso.
Contactou o seu superior, explicando a situação. Apesar de já desmobilizado, o exército concedeu-lhe um pequeno subsídio de reintegração e ligou-o a grupos de apoio a veteranos. Envergonhava-o pedir ajuda, mas não podia deixar que o orgulho o impedisse de alimentar os filhos.
Entretanto, os murmúrios espalharam-se pelo bairro. Alguns vizinhos tinham visto Joana partir meses antes com um homem num carro preto, sem olhar para trás. Outros admitiram ter tentado ajudar Beatriz, mas a menina insistira que conseguia.
Uma tarde, enquanto consertava a cerca partida, Manuel viu Beatriz a observá-lo com olhos preocupados.
“Pai, vais-te embora também?”, perguntou.
A pergunta quase o partiu. Deixou cair o martelo, ajoelhou-se e segurou-lhe os ombros. “Não, minha flor. Nunca vos deixarei. Tu e o Tomás são o meu mundo. Prometo.”
Beatriz acenou, mas Manuel via as marcas do abandono. Tornara-se velha demasiado cedo. Tomás também se agarrava ao Bóris, como se o cão fosse a sua única segurança.
Decidido, Manuel candidatou-se a empregos locais de segurança. Com o seu passado militar, arranjou rapidamente trabalho como vigilante noturno num armazém. Não era glamoroso, mas pagava as contas. Durante o dia, reparava a casa, cozinhava, tentando trazer normalidade.
Mas o fantasma de Joana pairou sobre tudo. À noite, ficava acordado, a perguntar como ela pudera partir tão facilmente. Uma vez, Beatriz admitiu que Joana lhe dissera para não contar do caso. “Disse que ficarias zangado. Que queria uma vida nova.”
O coração de Manuel endureceu. Não fora só traição—fora crueldade. Percebeu então que não podia ficar preso a ela. A sua missão agora era curar os filhos, ser pai e mãe, protetor e provedor.
Mesmo assim, sabia que não seria fácil.
As semanas viraram meses, e a família Sousa ajustou-se lentamente. Manuel criou rotinas: pequeno-almoço juntos, passeios com Bóris, trabalhos de casa à mesa da cozinha. Beatriz começou a sorrir, os ombros mais leves sabendo que não carregava tudo sozinha. Tomás também se soltou, rindo mais, embora ainda acordasse à noite a chamar pela irmã.
O laço entre pai e filhos aprofundou-se, forjado pela dor mas fortalecido pela confiança. Os vizinhos notaram a mudança, oferecendo refeições, roupas usadas e amizade. Pela primeira vez desde o regresso, Manuel sentiu que não estava sozinho.
Até que, uma tarde, Joana apareceu. Chegou no mesmo carro preto que os vizinhos descreveram, vestida com roupas caras, o cabelo bem cortado. O homem com quem partira não estava. Bateu à porta como se ainda pertencesse àquele lugar.
Beatriz congelou ao vê-la. Tomás escondeu-se atrás de Bóris, que rosnou baixinho, sentindo a tensão.
Joana sorriu, sem jeito. “Manuel… crianças… voltei. Errei.”
Ele permaneceu na soleira, o rosto de pedra. “Erraste? Abandonaste-os. A Beatriz criou o Tomás enquanto tu brincavas às casinhas com outro.”
“Não era feliz”, balbuciou. “Mas quero corrigir as coisas.”
Beatriz abanou a cabeça. A voz pequena mas firme: “Já não precisamos de ti, mãe. O pai trata de nós agora.”
Os olhos de Joana encheram-se de lágrimas, mas Manuel não vacilou. “Deixaste-nos à nossa sorte. Não podes voltar quando te convém.” Deu um passo à frente e fechou-lhe a porta na cara.
Dentro de casa, virou-se para os filhos. Beatriz encostou-se a ele, Tomás abraçou Bóris com força, e, pela primeira vez, Manuel sentiu uma paz estranha. Sabia que o caminho à frente ainda seria duro—contas, trabalho, a paternidade—mas a pior tempestade já passara.
Naquela noE, enquanto as estrelas brilhavam sobre Coimbra, Manuel percebeu que, por mais dura que fosse a batalha, a família que reconstruíra com amor e coragem valera cada lágrima e cada sorriso.