**Diário Pessoal**
Desde o dia em que trouxeram o bebé para casa, o cão preto chamado Bento transformou-se de repente num guardião constante do quarto. No início, Afonso e a esposa, Leonor, pensaram ser um bom sinal: o cão protegia o bebé, vigiando a porta. Mas depois de apenas três noites, a tranquilidade desfez-se.
Na quarta noite, precisamente às 2:13 da madrugada, Bento ficou rígido, as patas firmes, o pêlo eriçado como espinhos, rosnando para o berço ao lado da cama. Não ladrou nem avançou, apenas rosnou, um som longo e cortado, como se alguém lhe abafasse a voz das sombras.
Afonso acendeu o candeeiro e foi acalmá-lo. O bebé dormia tranquilamente, os lábios crispados como se estivesse a mamar, sem chorar. Mas os olhos de Bento estavam fixos debaixo da cama. Cheirou, escondeu o focinho no espaço empoeirado e rosnou outra vez. Afonso ajoelhou-se, acendeu a lanterna do telemóvel e só viu caixas, fraldas e uma sombra espessa como um poço sem fundo.
Na quinta noite, repetiu-se às 2:13. Na sexta, Leonor acordou assustada ao ouvir um arranhar lento, deliberado, como unhas a raspar madeira. “Devem ser ratos”, disse, a voz trémula. Afonso puxou o berço para perto do armário e armou uma ratoeira no canto. Mesmo assim, Bento encarava o rodapé da cama, soltando rosnados curtos sempre que o bebé se mexia.
Na sétima noite, Afonso decidiu não dormir. Sentou-se na cama, as luzes apagadas, apenas com o candeeiro do corredor a projetar uma réstia dourada no quarto. O telemóvel estava pronto para gravar.
À 1:58, uma rajada de vento entrou pela janela, trazendo o cheiro húmido do jardim.
Às 2:10, a casa parecia oca, vazia.
Às 2:13, Bento levantou-se de um salto, não rosnando logo, mas olhando para Afonso, pressionando o focinho contra a mão dele, suplicando com os olhos. Depois, rastejou em silêncio, como se caçasse, e apontou o focinho para debaixo da cama. O rosnado explodiu, profundo, prolongado, como se impedisse algo de sair.
Afonso iluminou com o telemóvel. Naquele breve clarão, viu movimento. Não era um rato. Uma mão, pálida e esverdeada, manchada de sujidade, enroscou-se como uma aranha. A luz tremeluziu quando a mão dele tremeu. Afonso recuou, batendo no armário. Leonor sentou-se, a perguntar em pânico. O bebé continuou a dormir, os lábios húmidos de leite.
Afonso agarrou o filho, protegeu-o às costas e pegou num antigo taco de basebol. Bento atirou-se para debaixo da cama, os rosnados transformando-se em latidos furiosos, as unhas a arranhar o chão. Da escuridão veio um som de arranhar gelado, depois silêncio. As luzes pestanejaram. Algo recuou, rápido, deixando um rasto de pó negro.
Leonor soluçou, implorando que chamasse a polícia. As mãos trémulas de Afonso discaram. Em dez minutos, chegaram dois agentes. Um ajoelhou-se, iluminando com a lanterna enquanto afastava as caixas. Bento bloqueou o berço, mostrando os dentes. “Acalma-te”, disse o agente, firme. “Deixa-me ver…” Debaixo da cama estava vazio. Apenas pó revolvido, marcas de unhas serpeando nos soalhos.
A luz do agente deteve-se numa fenda na parede, perto da cabeceira: a madeira estava cortada o suficiente para uma mão passar. Bateu nela, soou oco. “Há uma cavidade. Esta casa teve obras?”
Afonso negou. Nesse momento, o bebé choramingou. Os olhos de Bento brilharam; virou a cabeça para a fenda e rosnou. Da escuridão, escapou um sussurro, rouco, humano: “Shhh… não o acordes…”
Ninguém na casa dormiu depois daquele sussurro.
O agente mais novo, Diogo, pediu reforços. Enquanto esperava, arrancou o rodapé na base da parede. Estranhamente, os pregos eram novos, brilhantes contra a madeira velha e escurecida pelo tempo. “Alguém mexeu aqui há um ou dois meses”, disse. A garganta de Afonso secou. Tinha comprado a casa a um casal de idosos três meses antes. Disseram que só tinham pintado a sala e arranjado o telhado, não o quarto.
Com um pé-de-cabra, Diogo arrancou a madeira. Atrás, havia uma cavidade negra, como a garganta de uma caverna. O cheiro húmido misturava-se com outro: leite azedo e talco. Bento puxou Afonso para trás, rosnando. Leonor agarrou o bebé, o coração acelerado. Diogo apontou a luz para dentro.
“Alguém aí?” Silêncio. Mas quando o feixe atravessou, todos viram: pequenos objetos de bebé (uma chupeta, uma colher de plástico, um pano enrugado) e dezenas de marcas de contagem riscadas na madeira, cruzadas como uma teia.
Quando chegou a equipa de apoio, introduziram uma pequena câmara e puxaram um embrulho de tecido sujo. Dentro, havia um caderno grosso, gasto, com letra feminina trémula:
“Dia 1: Durmo aqui. Ouço a respiração dele.”
“Dia 7: O cão sabe. Faz guarda, mas não morde.”
“Dia 19: Tenho de ser silenciosa. Só quero tocar-lhe na face, ouvir o seu choro mais perto. Não acordes ninguém.”
As entradas eram curtas, frenéticas, como escritas no escuro.
“Quem viveu aqui antes?”, perguntou um agente. Afonso lembrou-se vagamente: durante a entrega, o casal de idosos estava acompanhado por uma mulher jovem. Ela mantinha a cabeça baixa, o cabelo a tapar metade do rosto. A idosa dissera: “Ela está preocupada, não fala muito.” Na altura, não prestaram atenção.
A câmara revelou mais: a cavidade corria ao longo da parede, formando um túnel escondido. Num canto, havia um ninho improvisado: um cobertor fino, uma fronha, latas de leite vazias. No chão, um novo risco: “Dia 27: 2:13. Respira mais forte.”
2:13: a hora da refeição noturna do bebé. De alguma forma, a rotina do filho tinha sido vigiada, de dentro das paredes.
“Não é um fantasma”, disse Diogo, sombrio. “É uma pessoa.” Investigando mais, encontraram trincos de janela arrancados e pegadas sujas no telhado. Alguém tinha entrado e saído até há pouco.
Ao amanhecer, Diogo aconselhou: “Fecha o quarto esta noite. Deixa o cão lá dentro com um de nós. Vamos ver se ela volta.”
Nessa noite, às 2:13, o pano a tapar a fenda mexeu. Uma mão magra, suja, emergiu. Seguiu-se um rosto descarnado: olhos fundos, cabelo emaranhado, lábios gretados. Mas o mais arrepiante foi o olhar fixo no berço, como se fosse sede em forma humana.
EEla sussurrou novamente, os olhos marejados, antes de desaparecer para sempre nas sombras.