António Almeida estava habituado a chegar a casa depois das 21h, quando todos já dormiam. Mas hoje, a reunião com os investidores em Lisboa terminou mais cedo, e ele decidiu ir direto para casa sem avisar. Ao abrir a porta da sua mansão no bairro do Restelo, António ficou parado, incapaz de processar o que via. No meio da sala, Mariana, a empregada doméstica de 28 anos, estava ajoelhada no chão molhado com um pano na mão. Mas não foi isso que o deixou sem reação.
Era a cena ao lado dela. O seu filho, Tiago, de apenas quatro anos, estava de pé com as suas pequenas muletas roxas, segurando um pano de cozinha e tentando ajudar a jovem a limpar o chão.
“Tia Mariana, eu consigo limpar esta parte aqui”, disse o menino louro, esticando o bracinho com dificuldade.
“Não te preocupes, Tiago, já me ajudaste muito hoje. Que tal sentares-te no sofá enquanto eu termino?”, respondeu Mariana com uma doçura na voz que António nunca lhe ouvira antes.
“Mas eu quero ajudar. A senhora sempre diz que somos uma equipa”, insistiu o menino, tentando equilibrar-se melhor nas muletas.
António ficou ali, invisível, a observar a cena. Havia algo naquela interação que o comoveu de um modo inexplicável. Tiago sorria, algo que raramente via em casa.
“Está bem, meu ajudante, mas só mais um bocadinho”, disse Mariana, cedendo à ajuda do menino.
Foi então que Tiago viu o pai no limiar da porta. O seu rostinho iluminou-se, mas havia uma mistura de surpresa e medo nos seus olhos verdes.
“Pai, chegaste cedo!”, exclamou, tentando virar-se rápido e quase perdendo o equilíbrio.
Mariana levantou-se de um salto, assustada, deixando cair o pano no chão. Secou as mãos no avental e baixou a cabeça. “Boa noite, senhor António. Não sabia que estava em casa.”
“Estava a terminar de limpar”, gaguejou, claramente nervosa.
António ainda processava a cena. Olhou para o filho, que segurava o pano, e depois para Mariana, que parecia querer desaparecer.
“Tiago, o que estás a fazer?”, perguntou António, tentando manter a calma.
“Estou a ajudar a tia Mariana, pai. Olha!” Tiago deu uns passos trôpegos em direção ao pai, orgulhoso. “Hoje consegui ficar de pé quase cinco minutos sozinho!”
António olhou para Mariana, buscando uma explicação. A empregada mantinha a cabeça baixa e torcia as mãos nervosamente.
“Cinco minutos”, repetiu António, surpreendido. “Como assim?”
“A tia Mariana ensina-me exercícios todos os dias. Diz que se eu praticar muito, um dia vou conseguir correr como os outros meninos”, explicou Tiago com entusiasmo.
O silêncio tomou conta da sala. António sentiu uma mistura de emoções que não conseguia identificar: raiva, gratidão, confusão. Olhou novamente para Mariana. “Exercícios?”, questionou.
Ela finalmente ergueu o olhar, seus olhos castanhos cheios de medo. “Senhor António, era só uma brincadeira com o Tiago. Não quis fazer nada de errado. Se quiser, posso ir embora.”
“A tia Mariana é a melhor!”, interrompeu Tiago, colocando-se entre os dois adultos. “Pai, ela nunca desiste de mim quando choro porque dói. Diz que sou forte como um guerreiro.”
António sentiu um aperto no peito. Quando foi a última vez que vira o filho tão animado? Quando foi a última vez que conversara com ele por mais de cinco minutos?
“Tiago, vai para o teu quarto. Preciso falar com a Mariana”, disse António, tentando soar firme mas gentil.
“Mas pai…” “Agora, Tiago.”
O menino olhou para Mariana, que lhe deu um sorriso de encorajamento. Tiago afastou-se com as muletas, mas antes de desaparecer pela escada, gritou: “A tia Mariana é a melhor pessoa do mundo!”
António e Mariana ficaram sós na sala. O empresário aproximou-se, notando pela primeira vez que as calças da empregada estavam manchadas de água nos joelhos e suas mãos estavam vermelhas de tanto esfregar.
“Há quanto tempo isto acontece? Os exercícios. Há quanto tempo fazes isso com o Tiago?”
Mariana hesitou. “Desde que comecei a trabalhar aqui, senhor, há uns seis meses. Mas juro que nunca deixei o trabalho por isso. Faço os exercícios na hora do almoço ou depois de terminar tudo.”
“Não te pagam extra por isso”, observou António.
“Não, senhor, e não peço nada. Gosto de brincar com o Tiago. Ele é um menino especial.”
“Especial? Como?” Mariana pareceu surpresa. “Como assim, senhor?”
“Disseste que ele é especial. Especial como?” Ela sorriu pela primeira vez desde que António chegara. “É determinado, senhor. Mesmo quando os exercícios doem e ele quer chorar, não desiste. E tem um coração enorme. Sempre se preocupa se estou cansada ou triste. É muito carinhoso.”
António sentiu novamente o aperto no peito. Quando foi a última vez que reparara nesses detalhes no próprio filho?
“E os exercícios, como sabes o que fazer?”, continuou.
“Tenho experiência, senhor.” “Que tipo de experiência?”
Houve uma longa pausa. Mariana parecia lutar com as palavras. “O meu irmão mais novo, Pedro, nasceu com problemas nas pernas. Passei a infância toda a levá-lo à fisioterapia, a aprender exercícios. Quando vi o Tiago, não consegui ficar só a olhar.”
“Triste?”
“Com todo o respeito, senhor, o Tiago anda muito sozinho. A senhora Beatriz está sempre com as amigas, e o senhor trabalha muito. Pensei que talvez pudesse ajudar.”
António ficou em silêncio. Pensou em quantas vezes vira Tiago sorrir nas últimas semanas. Não se lembrava de nenhuma.
“Onde está a Beatriz?” “A senhora Beatriz saiu para jantar com as amigas. Disse que voltaria tarde.” “E ficaste aqui com o Tiago?” “Sim, senhor. Ele jantou, tomou banho, fizemos os exercícios e eu estava a limpar porque ele derramou sumo. Ele quis ajudar.”
António olhou em volta. Tudo estava impecável – os móveis brilhavam, não havia um pó, até as plantas pareciam mais vivas.
“Mariana, posso fazer-te uma pergunta pessoal?” “Claro, senhor.” “Por que trabalhas como empregada? Tens conhecimento de fisioterapia, és boa com crianças. Por que não trabalhas na área da saúde?”
A pergunta surpreendeu Mariana. Ela sorriu com tristeza. “Porque não tenho diploma, senhor. Aprendi tudo a cuidar do meu irmão, mas isso não conta para nada oficial. E preciso trabalhar para sustentar a minha família.”
“Sustentar como?” “A minha mãe e o Pedro. Ele tem dezasseis anos. Estuda de manhã e trabalha numa lojinha à tarde. A minha mãe limpa escritórios à noite. Nós vamos indo.”
António sentiu uma mistura de admiração e vergonha. Aquela mulher de vinte e oito anos trabalhava para sustentar a família e ainda encontrava tempo e energia para cuidar do seu filho com tanto amor.
“E nunca pensaste em estudar, fazer um curso?” Ela riu sem alegria. “Com que dinheiro, senhor? Com que tempo? Saio de casa às seis, apanho dois autocarros para chegar aqui às sete e meia, trabalho até às seis e volto a apanhar transportes. Chego a casa às oito, ajudo o Pedro nos trabalhos da escola, faço o jantar e já é quase meia-noite quando me deito. FAntónio olhou para Mariana com um novo respeito e, nesse momento, percebeu que a verdadeira riqueza da vida não está nos bens materiais, mas nas conexões humanas que nos transformam para melhor.