Há muitos anos, na pacata vila de Monsanto, um menino de sete anos, confinado a uma cadeira de rodas, lutava para conter as lágrimas enquanto sua madrastra o humilhava sem piedade. Antes que ela pudesse proferir algo ainda mais cruel, a empregada doméstica surgiu à porta e bradou: “Pare com isso!” A voz ecoou pela sala, fazendo com que o milionário, que acabara de chegar, ficasse paralisado diante daquela cena.
Desde que a mansão nos arredores da Serra da Estrela perdera sua voz, dois invernos haviam passado. Não por falta de ocupantes, mas porque tudo ali parecia mergulhado em um silêncio opressivo, denso como o nevoeiro que envolvia as montanhas.
Afonso, dono daquela casa imponente, com janelões que beiravam o céu e um jardim digno das páginas de uma revista, já nem se espantava ao acordar com aquela sensação de vazio. A esposa, Beatriz, partira numa noite de chuva, quando o carro desgovernado a levou embora, justo quando voltava com um presente para o quinto aniversário do pequeno Simão. Desde então, até o vento parecia soprar diferente.
Simão ficara preso à cadeira de rodas. O impacto fraturara sua coluna, e nunca mais caminhara. Mas o pior não foi isso. O pior foi nunca mais ter sorrido, nem mesmo quando lhe trouxeram um cachorrinho, ou encheram a sala com uma piscina de bolinhas. Ele apenas olhava, sério, os olhos escuros carregados de uma tristeza que não combinava com a sua idade.
Agora com sete anos, parecia carregar o peso do mundo nos ombros. Afonso fazia o que podia. O dinheiro nunca fora problema—podia pagar médicos, fisioterapeutas, brinquedos e tudo mais—mas não podia comprar ao filho o que mais lhe faltava: a mãe. Ele próprio estava destroçado, apenas disfarçava melhor.
Levantava-se cedo, mergulhava no trabalho em seu escritório e, à tarde, sentava-se ao lado de Simão em silêncio. Às vezes, lia para ele; outras, viam desenhos animados. Mas tudo parecia uma peça trágica na qual eram obrigados a atuar. Várias babás e empregadas haviam passado pela casa, mas nenhuma ficava. Algumas não suportavam a atmosfera pesada; outras não sabiam como lidar com o menino. Uma desistiu em três dias, chorando. Outra nunca mais voltou depois da primeira semana. Afonso não as julgava—ele mesmo já pensara em fugir muitas vezes.
Numa manhã, enquanto lia e-mails na sala de jantar, ouviu a campainha. Era a nova empregada. Pedira à sua assistente, Leonor, que contratasse alguém experiente, mas também bondosa—não apenas eficiente. Leonor dissera que encontrara uma mulher trabalhadora, mãe solteira, de temperamento sereno. Chamava-se Mariana.
Quando entrou, Afonso observou-a de relance. Vestia uma blusa simples e calças de ganga. Nem jovem, nem velha. Seus olhos tinham um brilho sincero, como se já conhecesse a todos ali. Sorriu timidamente, e ele retribuiu com um aceno breve—não estava para conversas. Pediu ao mordomo, Eduardo, que lhe explicasse as regras da casa e voltou ao trabalho.
Mariana foi direto para a cozinha. Apresentou-se aos outros empregados e começou a trabalhar como se ali sempre tivesse pertencido. Movia-se em silêncio, falava baixo, e tratava todos com respeito. Ninguém sabia como, mas em poucos dias, o ar na casa parecia menos pesado. Talvez fosse a música suave que punha enquanto varria, ou o modo como chamava cada um pelo nome. E, sobretudo, o fato de não olhar para Simão com pena, como os outros.
A primeira vez que o viu, ele estava no jardim, sob a sombra de uma oliveira, imóvel em sua cadeira. Mariana aproximou-se com uma bandeja de bolinhos de amêndoa caseiros e sentou-se ao seu lado, sem pressa. Ofereceu-lhe um. Simão olhou de soslaio, mas não recusou. E assim ficaram, sem palavras, apenas companhia.
No dia seguinte, Mariana voltou ao mesmo lugar, à mesma hora, com os mesmos bolinhos. Desta vez, sentou-se mais perto. Simão ainda não os aceitou, mas perguntou-lhe se sabia jogar Sueca. Ela disse que sim, embora não fosse muito boa. No terceiro dia, as cartas já estavam sobre a mesa. Jogaram uma partida. Simão não sorriu, mas também não desistiu ao perder.
Afonso começou a notar as mudanças. O filho já não queria ficar sozinho. Perguntava se Mariana viria. Seguia-a com os olhos pela casa. Certa tarde, pediu-lhe até que o ajudasse a pintar. Ela sentou-se ao seu lado, entregando-lhe pincéis sem pressa.
Fazia tempo que Simão não mostrava interesse em nada. Seu quarto também mudara—Mariana pendurara seus desenhos nas paredes, organizara os brinquedos em uma prateleira baixa, ensinara-o até a fazer um pão com marmelada sozinho. Pequenos gestos, mas que pesavam mais que ouro.
Afonso sentia gratidão, mas também confusão. Não sabia se era sorte ou se Mariana realmente possuía algo especial. Às vezes, parava à porta, observando-a conversar com Simão, tocar-lhe o ombro, sorrir para ele. Não era uma mulher de chamar atenção, muito menos de jogos—mas sua presença era impossível de ignorar.