**Diário de um Pai**
Era para ser o começo de uma vida nova. É o clichê, não é? Fazer as malas, pegar a filha e mudar para o outro lado do país depois de um divórcio que me deixou vazio e lutando para sobreviver. Foi o que fiz. Chamo-me Tiago, e a minha filha, Beatriz, é o meu mundo inteiro. Tem seis anos, com caracois louros desalinhados e um sorriso desdentado que derreteria o coração mais frio de Lisboa.
Estávamos no Aeroporto Humberto Delgado. Quem já passou por lá na loucura das férias sabe a energia caótica que vibra no chão. Cheira a café requentado, cera de chão e ansiedade. Estávamos exaustos. O nosso voo para o Porto tinha sido adiado duas vezes, e já estávamos sentados perto do Portão B32 há quatro horas.
Beatriz comportava-se como uma guerreira, mas via o cansaço nos seus olhos. Agarrada a um urso de pelúcia velho, o “Sr. Patas”, que tinha desde bebé. Mas mais cedo, enquanto eu comprava bolos num quiosque, uma senhora idosa — devia ter oitenta anos, parecia a avó de toda a gente — começou a conversar com a Beatriz. Sentiu pena de a ver tão cansada e deu-lhe um boneco novo: um unicórnio roxo brilhante. “Um guardião para as tuas viagens”, disse a velhinha com uma piscadela. Agradeci, pensando que era apenas um gesto de bondade numa cidade que costuma faltar-lhes. Beatriz chamou-lhe “Brilho” e enfiou o Sr. Patas na mochila.
Finalmente, chamaram-nos para embarcar. Estávamos no Grupo 4. Peguei nas bagagens de mão, agarrei a mão da Beatriz e seguimos para a ponte de embarque.
Foi então que o ambiente mudou. Não foi um som, foi uma sensação. O ar ficou mais pesado, mais afiado.
Olhei para o lado e vi um agente da PSP com um pastor alemão. O cão, um animal lindo mas intimidante, parou de repente. As orelhas ficaram rígidas como antenas. Não olhava para mim. Olhava para a Beatriz.
“Vamos, Rex”, puxou o agente a trela.
O cão não se mexeu. Em vez disso, soltou um gemido baixo que senti no peito.
E então aconteceu.
Não era só o Rex. Do outro lado do terminal, outro agente estava com um malinois. O cão virou a cabeça, ignorou o comando e começou a puxar na nossa direção.
“Pai?”, a Beatriz apertou-me a mão. “Porque é que os cães estão a olhar para mim?”
Antes que pudesse responder, apareceu um terceiro cão. Depois um quarto. Era surreal, como uma cena de filme em câmara lenta. Os agentes gritavam comandos, os rádios chiavam, mas os cães… os cães estavam possuídos por um único objetivo. Quebraram a formação.
Em trinta segundos, quinze cães — pastores alemães, malinois, labradores — cercaram-nos.
Mas não atacaram. É isso que me assombra. Não ladraram nem morderam. Formaram um círculo perfeito em volta da minha filha de seis anos. Sentaram-se. Quinze animais poderosos, imóveis, a encará-la com intensidade, criando uma barreira entre ela e o resto do mundo.
O terminal ficou em silêncio. Centenas de pessoas pararam. O silêncio era mais alto que os anúncios.
“Não se mexam!”, uma voz cortou o ar.
Olhei para cima. Um agente da PSP, ou talvez da SIS, não sei, apontava-me uma arma.
“Afastem-se da criança! AGORA!”, gritou, a voz a tremer de tensão.
“É a minha filha!”, gritei, o pânico a apertar-me a garganta. “O que se passa? Afastem os cães dela!”
“Senhor, afaste-se da menina imediatamente, ou usaremos força!”
A Beatriz começou a chorar. Um som agudo que me partiu o coração. “Pai! Pai, estou com medo!”
Avancei um passo.
“EU DISSE PARA SE DEITAR NO CHÃO!”
Dois agentes atiraram-se a mim. Bati com o rosto no chão de mármore frio. O ar fugiu-me dos pulmões. Lutei, tentando ver a Beatriz entre pernas e botas.
“Beatriz! Está tudo bem! O pai está aqui!”, gritei, mesmo com as algemas a cortarem-me os pulsos.
Através das lágrimas, vi o chefe dos agentes caninos aproximar-se do círculo. Não parecia zangado. Parecia… aterrorizado. Olhou para os cães, depois para a Beatriz, e para o unicórnio roxo que ela apertava contra o peito.
Tocou no auricular. “Código Vermelho. Repito, Código Vermelho no Portão B32. Evacuar o terminal. Agora.”
As sirenes começaram a tocar. Luzes vermelhas iluminaram o rosto assustado da Beatriz. Os cães não se mexeram. Ficaram ali, a protegê-la, ou a proteger algo nela.
“O que foi?”, implorei ao agente que me imobilizava. “O que é que ela fez?”
O agente inclinou-se, sussurrando no meu ouvido: “Reze, senhor. Reze para que os cães não quebrem o comando. Se o fizerem, estamos todos mortos.”
**Parte 2**
O caos que se seguiu foi um borrão, mas a minha mente fixou-se numa imagem: a Beatriz, pequena e trémula nas suas calças cor-de-rosa, cercada por uma muralha de pêlo e músculos.
Arrastaram-me. Literalmente. Gritava e lutava com uma força que não sabia ter. “Ela tem seis anos! Não fez nada!”, gritei até a garganta arder.
Enfiram-me numa sala sem janela, a cheirar a suor e desinfetante. A porta fechou-se com um clique pesado. Fiquei sozinho com uma mesa de metal e duas cadeiras. Sem espelho. Sem água. Apenas a luz fluorescente a piscar.
Os minutos eram horas. Pensei em tudo. Drogas? Alguém meteu algo na mochila? Mas quinze cães? Cães de deteção alertam, mas não agem como um enxame. Isto era diferente. Era biológico. Ou químico.
A porta abriu-se. Entrou um homem de fato, com uma pasta. Não parecia polícia. Parecia um burocrata que já tinha visto demasiado.
“Sou o Agente Silva”, disse, sentando-se. Não me tirou as algemas.
“Onde está a Beatriz?”, exigi. “Se lhe fizeram mal—”
“Ela está segura”, disse, calmo. “Está numa unidade de descontaminação com uma psicóloga. Fisicamente, está bem.”
Inclinei-me para a frente, a cabeça na mesa. “Graças a Deus. Então o que é isto? Porque me algemaram?”
Silva abriu a pasta e mostrou-me uma foto. A velhinha. A “avó” que dera o unicórnio à Beatriz.
“Conhece esta mulher?”, perguntou.
“Não. Conhecemo-la hoje. Deu um brinquedo à Beatriz. O unicórnio roxo.”
Silva assentiu. “Esse brinquedo está a ser desmontado por um robô da equipa antibombas.”
A sala girou. “Uma bomba? Acredita que a minha filha estava com uma bomba?”
“Não é um explosivo convencional, Tiago”, disse, inclinando-se. “Essa mulher é uma fantasma. Há três anos que a seguimos. Trabalha para um grupo que transporta coisas ‘indetetáveis’. Isótopos raros, agentes nervosos. Coisas que os scanners não apanham.”
“Mas os cães…”Anos depois, ainda olho para os cães com gratidão, lembrando-me que, num mundo cheio de perigos imprevisíveis, a bondade se esconde até nos lugares mais inesperados, pronta a proteger os inocentes quando mais precisam.”