A chuva batia no para-brisas do velho táxi amarelo enquanto João ajustava o boné de motorista que comprara naquela manhã. Suas mãos, acostumadas a assinar contratos milionários, agora tremiam levemente ao volante gasto. Nunca imaginara que chegaria a isto. Espiar a própria esposa disfarçado de taxista. João construíra um império empresarial do zero. Aos quarenta e poucos anos era dono de uma cadeia de hotéis de luxo espalhados por todo o país.
Seu nome aparecia regularmente nas páginas de negócios dos principais jornais e seu rosto era reconhecido nos círculos mais exclusivos da sociedade. Mas naquela manhã, sentado num táxi emprestado por Fernando, seu motorista de confiança, sentia-se como o homem mais pobre do mundo.
Tudo começara uma semana antes, quando encontrara uma mensagem no telemóvel de Sofia que mudou seu mundo para sempre. “Até amanhã, às 15h, como sempre. Amo-te”, dizia a mensagem de um número desconhecido. Sua esposa, a mulher com quem partilhava tantos anos de casamento, a mãe de seus filhos, tinha um caso.
Sofia era tudo o que João sonhara numa mulher – elegante, inteligente, com um sorriso que iluminava qualquer sala. Conheceram-se quando ele ainda começava o negócio, e ela estivera ao seu lado durante todos os anos de luta e sucesso – ou pelo menos era o que ele pensava.
A ideia do disfarce surgiu quando João percebeu que contratar um detetive privado seria arriscado demais. Em sua posição, qualquer rumor poderia destruir não só seu casamento, mas sua reputação. Fernando, que trabalhava para a família há anos, sugerira a ideia maluca.
“Senhor João,” dissera Fernando com sua prudência característica, “se quer mesmo saber a verdade sem que ninguém descubra, tem de ser você a descobrir. Posso arranjar-lhe um táxi e ensinar a conduzi-lo. Ninguém o reconhecerá.”
No início, João achou a ideia absurda. Mas quanto mais pensava, mais sentido fazia. Sofia nunca desconfiaria que seu marido milionário estaria a conduzir um táxi pelas ruas de Lisboa.
Durante três dias, Fernando ensinou-lhe o básico do trabalho: usar o taxímetro, as rotas mais comuns, como falar com os passageiros. João surpreendeu-se com o quanto desconhecia da cidade que julgava dominar, sempre vista pelos vidros fumados dos seus carros de luxo.
No quarto dia, João estacionou num canto perto do shopping exclusivo onde Sofia fazia suas compras. Usava óculos escuros, um boné desgastado e uma camisa xadrez comprada para a ocasião. Deixara a barba crescer por dias, mudando completamente seu visual. Por horas, observou cada carro, cada pessoa que passava.
Seu coração acelerava cada vez que via alguém que lembrasse Sofia. Mas ela não apareceu no primeiro dia. No segundo, quase desistiu. A incerteza corroía-o. Talvez tivesse interpretado mal a mensagem.
Mas então lembrou-se dos pequenos detalhes que ignorara: as chamadas que Sofia interrompia quando ele entrava no quarto, as desculpas cada vez mais frequentes para sair sozinha, o modo como se arrumava mais agora, até para tarefas banais.
No terceiro dia, finalmente a viu. Sofia saiu do shopping com sacolas, mas algo era diferente – olhava em volta como quem espera alguém ou teme ser vista. O estômago de João revirou-se enquanto a observava caminhar para o ponto de táxis.
Sem pensar, arrancou e estacionou diante dela. Sofia entrou no banco de trás sem sequer olhá-lo no rosto – coisa pela qual João ficou profundamente grato.
“Boa tarde,” disse ele, disfarçando a voz, tornando-a mais grave, com um ligeiro sotaque que treinara. “Para onde vamos?”
Sofia deu-lhe um endereço que ele não reconheceu de imediato – um bairro residencial de classe média, muito diferente da zona nobre onde moravam.
Enquanto conduzia, João observava-a pelo retrovisor. O trânsito estava pesado, dando-lhe mais tempo para estudá-la. Ela parecia nervosa, verificando o telemóvel constantemente, ajustando o cabelo. Usava um vestido que ele nunca vira, e as joias eram diferentes das habituais.
“É a primeira vez que vai a este endereço?”, perguntou João, tentando soar como um taxista curioso mas inofensivo.
Sofia ergueu os olhos do telemóvel pela primeira vez desde que entrara. Pelo retrovisor, João viu seus lindos olhos verdes – os mesmos de que se apaixonara anos atrás –, mas havia algo novo neles: ansiedade e culpa.
“Não,” respondeu suavemente. “Vou lá regularmente.”
João sentiu como se levara um soco no estômago. Aquilo não era novidade – era uma rotina. Quanto tempo durara? Como fora tão cego?
“Deve ser um lugar especial, então,” comentou, lutando para manter a voz neutra enquanto seu mundo desabava.
Sofia ficou em silêncio por minutos, e João pensou que não responderia. Mas então, surpreendentemente, ela começou a falar.
“Sim, é muito especial,” disse Sofia, com uma emoção que ele não identificou logo. “É onde encontro alguém que significa muito para mim. Alguém que meu marido não conhece.”
João apertou o volante com tanta força que os nós dos dedos embranqueceram. Ali estava a confissão que temera mas precisava ouvir.
“O seu marido não sabe dessa pessoa?”, perguntou, a voz quase falhando.
“Não,” respondeu Sofia, olhando pela janela. “E se soubesse, acho que o destruiria.”
As palavras dela ecoaram na cabeça de João como sinos fúnebres. Ela tinha razão – ele se sentia em pedaços. Mas o que mais doía não era a traição, mas o fato de ela saber o dano que causava e mesmo assim continuar.
“Por que não lhe conta?”, perguntou João, sentindo que aquela conversa enquanto dirigia era a coisa mais difícil que já fizera.
Sofia suspirou fundo – um suspiro que ele conhecia bem, o mesmo que dava antes de decisões difíceis.
“Porque ele não entenderia,” disse finalmente. “Meu marido é um bom homem, mas há partes de mim, do meu passado, que ele nunca quis conhecer. Sempre preferiu a versão perfeita de mim, a esposa que cabe no seu mundo de sucesso.”
João sentiu outro golpe. Aquilo era verdade? Tivera tão absorvido pela imagem da família perfeita que nunca realmente conhecera sua esposa?
“Talvez ele quisesse conhecer essas partes se lhe desse a chance,” sugeriu João, lutando contra o impulso de tirar o boné e revelar-se.
“Não acho,” respondeu Sofia com uma tristeza palpável. “Ele vive para o trabalho, para o sucesso, para manter a imagem perfeita da nossa família. Não tem tempo para complicações. E isto seria uma grande complicação.”
Enquanto seguia para o destino misterioso, João percebeu que a conversa revelava mais do que esperara. Não só descobrira o caso da esposa, mas via agora um reflexo doloroso de si mesmo como marido.
O bairro era tranquilo, com casas modestas mas bem cuidadas, jardins pequenos e ruas arborizadas – um mundo totalmente diferente das torres de vidro e restaurantes estrelados onde João passava seu tempo.
“Estamos quase lá,” anunciou Sofia, interrompendo seus pensamentos.
“Posso perguntar uma coisa?”, disse João, sentindo que aquela era talvez sua última chance. “Essa pessoa… faz-na feliz?”
A pergunta surpreendeu Sofia, que olhou pelo retrovisor, estudando o taxista. Por um instante, João temeu tê-la reconhecido, mas ela apenas sorriu, triste e terna.
“Sim,” respondeu simplesmente. “Faz-me lembrar quem eu era antes de me tornar aJoão estacionou o táxi em frente à casa simples onde Sofia entrava com um sorriso genuíno que ele não via há anos, e enquanto observava sua esposa abraçar uma idosa de olhos verdes idênticos aos dela e uma criança que gritava “Avó!”, percebeu, com o coração apertado, que a traição que imaginara era na verdade uma família oculta, uma vida inteira de segredos que seu próprio orgulho e distância haviam criado.