Desde o dia em que trouxeram o bebé para casa, o cão preto chamado Bento transformou-se num guardião incansável do quarto. No início, Pedro e a mulher, Inês, acharam que era uma boa coisa: o animal protegia o recém-nascido, vigiando a porta. Mas, depois de apenas três noites, a tranquilidade desfez-se como um castelo de cartas.
Na quarta noite, precisamente às 2:13 da manhã, Bento ficou hirto, as patas tensas, o pêlo eriçado como espinhos, rosnando para o berço ao lado da cama. Não ladrou, não avançou—apenas rosnou, um som rouco e intermitente, como se algo lhe sufrasse a voz nas sombras.
Pedro acendeu o candeeiro e aproximou-se para o acalmar. O bebé dormia tranquilamente, os lábios contraídos como se estivesse a mamar, sem chorar. Mas os olhos de Bento estavam fixos debaixo da cama. Cheirou o chão, esticou-se e sibilou para o espaço escuro e empoeirado. Pedro ajoelhou-se, iluminou com a lanterna do telemóvel e só viu algumas caixas, fraldas e uma sombra espessa, como um poço sem fundo.
Na quinta noite, repetiu-se às 2:13. Na sexta, Inês acordou sobressaltada ao ouvir um arranhar lento, deliberado, como unhas a raspar a madeira. “Devem ser ratos,” murmurou, a voz a tremer. Pedro aproximou o berço do armário e pôs uma ratoeira no canto. Mesmo assim, Bento continuou a fitar o vão sob a cama, rosnando baixo sempre que o bebé se mexia.
Na sétima noite, Pedro decidiu não dormir. Sentou-se à beira da cama, no escuro, deixando apenas a luz do corredor a desenhar um fio dourado no chão. O telemóvel estava pronto para gravar.
À 1:58 da manhã, uma rajada de vento entrou pela janela entreaberta, trazendo o cheiro húmido do jardim.
2:10, a casa parecia oca, vazia de vida.
2:13, Bento pôs-se de pé, não a rosnar de imediato, mas a olhar para Pedro, esfregando o focinho na sua mão, suplicando-lhe com os olhos. Depois, arrastou-se, cauteloso, e apontou para debaixo da cama. O rosnar explodiu, profundo e prolongado, como se estivesse a conter algo lá dentro.
Pedro ergueu a luz do telemóvel. Naquele breve clarão, viu movimento. Não era um rato. Era uma mão, pálida e esverdeada, coberta de sujidade, que se fechou como uma aranha. A luz vacilou quando a sua mão tremeu. Pedro recuou, batendo no armário. Inês sentou-se, a perguntar em pânico. O bebé continuou a dormir, os lábios húmidos de leite.
Pedro agarrou o filho, escondeu-o atrás das costas e empunhou um antigo taco de basebol. Bento atirou-se para debaixo da cama, os rosnidos transformando-se em latidos ferozes, as unhas a arranhar o chão. Das sombras veio um ruído de arrastar, depois silêncio. As luzes cintilaram. Algo recuou, rápido e silencioso, deixando um rasto de pó negro.
Inês soluçou, implorando para chamar a polícia. Com as mãos a tremer, Pedro marcou o número. Dez minutos depois, chegaram dois agentes. Um ajoelhou-se, iluminou com a lanterna enquanto empurrava caixas para o lado. Bento posicionou-se à frente do berço, os dentes à mostra. “Acalma-o,” disse o agente, firme. “Deixa-me ver…” Debaixo da cama estava vazio. Só pó revolvido e marcas de unhas nas tábuas do chão.
A lanterna do agente deteve-se numa fenda na parede, perto da cabeceira: a madeira estava cortada o suficiente para uma mão passar. Bateu—soou oco. “Há uma cavidade. Esta casa teve obras?”
Pedro abanou a cabeça. Nesse momento, o bebé resmungou. Os olhos de Bento brilharam; virou-se para a fenda e rosnou. Da escuridão, veio um sussurro, rouco e humano: “Shhh… não o acordes…”
Ninguém naquela casa voltou a dormir depois daquele sussurro.
O agente mais novo, Nuno, pediu reforços. Enquanto esperava, arrancou o rodapé. Estranhamente, os pregos eram novos, brilhantes contra a madeira envelhecida. “Isto foi manipulado há um mês ou dois,” disse. A garganta de Pedro secou. Tinha comprado a casa a um casal de idosos três meses atrás. Disseram-lhe que só tinham pintado a sala e arranjado o telhado, nada no quarto.
Com uma alavanca, Nuno arrancou a madeira. Por trás, havia um vão escuro como a boca de uma gruta. O cheiro húmido misturava-se com outro odor: leite azedo e talco. Bento puxou Pedro para trás, rosnando. Inês agarrou o bebé, o coração a bater desalmado. Nuno apontou a lanterna para dentro.
“Há alguém?” Silêncio. Mas quando a luz varreu o espaço, todos viram: pequenos objectos de bebé (uma chupeta, uma colher de plástico, um pano amachucado) e dezenas de riscos na madeira, como contagens entrelaçadas.
Quando a equipa de apoio chegou, introduziram uma câmara e retiraram um pacote de pano sujo. Dentro, um caderno grosso, com uma letra trémula e feminina:
“Dia 1: Dorme aqui. Ouço a respiração dele.”
“Dia 7: O cão sabe. Faz guarda, mas não morde.”
“Dia 19: Tenho de ser silenciosa. Só quero tocar-lhe na face, ouvir o choro mais perto. Não acordes ninguém.”
As entradas eram curtas, frenéticas, como escritas às escuras.
“Quem vivia aqui antes?”, perguntou um agente. Pedro lembrou-se vagamente: na escritura, um casal de idosos tinha uma jovem ao lado. Ela mantinha a cabeça baixa, o cabelo a tapar metade do rosto. A mulher mais velha dissera: “Ela é preocupada, não fala muito.” Na altura, não deram importância.
A câmara revelou mais: o vão estendia-se ao longo da parede, formando um túnel estreito. Num canto, um ninho improvisado: um cobertor fino, uma fronha, latas de leite vazias. No chão, um risco recente: “Dia 27: 2:13. Respira mais forte.”
2:13—a hora da mamada do bebé. Alguém tinha estudado a rotina do seu filho, desde dentro das paredes.
“Não é um fantasma,” disse Nuno, sombrio. “É uma pessoa.” A investigação revelou fechaduras das janelas partidas e marcas de pés no telhado. Alguém tinha entrado e saído até há pouco tempo.
Ao amanhecer, Nuno aconselhou: “Fecha este quarto hoje. Deixa o cão aqui com um de nós. Vamos ver se ela volta.”
Nessa noite, às 2:13, o pano a cobrir a fenda moveu-se. Uma mão magra e suja emergiu. Seguiu-se um rosto definhado: olhos fundos, cabelo emaranhado, lábios gretados. Mas o mais perturbador era o olhar fixo no berço, como se fosse sedeNo fim, descobriram que a jovem, chamada Carla, era filha dos antigos donos, que a haviam escondido por vergonha de sua doença, e ela só queria sentir, mesmo que por um instante, o calor daquela nova vida que nunca seria sua.