*Diário Pessoal*
Hoje foi um daqueles dias em que tudo muda sem aviso. Entrei na Base de Treino das Forças Especiais da Marinha Portuguesa em Troia, com o meu batom vermelho impecável e apenas uma mala de equipamento. Os operadores na fila riram-se assim que me viram. “Influencer perdida?” murmuravam. Não respondi, apenas ajustei o meu boné. Foi então que o chefe da pista, ao passar, reparou num pequeno símbolo no meu colarinho: “ATIRADORA DE ELITE”. Tudo mudou naquele momento.
O sol da manhã em Lisboa desenhava sombras compridas nos caminhos de cimento que levavam à base. Mesmo às 0700, o ar húmido trazia o cheiro salgado do rio Sado, misturado com o odor acre da pólvora dos campos de tiro próximos. Este era o lugar onde os melhores guerreiros de Portugal provavam o seu valor, onde milímetros faziam a diferença entre o sucesso e o fracasso.
A base fervilhava com a energia habitual antes do amanhecer. Os operadores movimentavam-se com eficiência treinada, as conversas entre eles uma mistura de tática e brincadeiras descontraídas. Hoje era dia de avaliação de tiro de precisão, onde apenas os melhores avançariam para treino especializado.
Na fila junto à Pista 7, um grupo de operadores experientes aguardava a sua vez nos alvos a mil metros. Não eram recrutas. Eram homens com múltiplas missões no currículo, que tinham conquistado o lugar com sangue, suor e horas incontáveis de treino. O equipamento estava gasto mas impecável, a postura confiante mas não arrogante. Sabiam que eram bons porque já o tinham provado onde mais importava.
Foi então que eu apareci.
Mariana Sousa entrou pelo portão de ferro com uma confiança silenciosa que não precisava de se anunciar. Vestia calças táticas e um casaco preto, o cabelo loiro preso num rabo de cavalo discreto. As botas estavam usadas mas bem cuidadas, sinal de alguém que passava muito tempo em ação. Tudo nela era profissional e adequado.
Exceto o batom.
Um vermelho carmim, aplicado com precisão, destacando-se como um farol num mundo de camuflagens e equipamento militar. Levava apenas uma mala de tiro ao ombro e caminhava com a determinação de quem sabia exatamente onde pertencia.
Os operadores repararam nela imediatamente.
“Perdeu-se, menina?” perguntou o Sargento-Chefe João Matias, num tom mais divertido do que hostil. “O estacionamento de visitas fica na entrada principal.”
Mariana parou, pousou a mala e tirou uns papéis dobrados do bolso. “Mariana Sousa, contratada civil. Tenho marcação para as 0730.”
O riso começou como um murmúrio na parte de trás do grupo e espalhou-se como uma onda.
“Tiro ao alvo?” o Cabo Rui Carvalho sorriu, cutucando o colega. “Vai disparar o quê, tutoriais de maquilhagem?”
“Talvez queira fotos para o Instagram,” outro acrescentou. “Umas fotos fixes com o batom e tudo.”
Mariana não reagiu. Limitou-se a abrir os papéis, verificá-los rapidamente e guardá-los outra vez. A expressão permanecia neutra, profissional.
“Mas a sério,” continuou Matias, num tom mais formal, “isto é uma instalação militar restrita. A avaliação de tiro de precisão é só para pessoal ativo. Alguém cometeu um erro.”
O grupo murmurou em concordância. Aquele era o território deles, a prova deles. A ideia de alguém de fora – ainda por cima com batom – exigir igual acesso parecia absurda.
Mariana afastou-se e encontrou um lugar à sombra da parede de cimento. Pousou a mala com cuidado, abriu-a só o suficiente para verificar o conteúdo e fechou-a. Todos os movimentos eram precisos, sem desperdício.
“Pode esperar o que quiser,” sussurrou Carvalho aos amigos. “Mas não há hipótese de a deixarem disparar connosco.”
O que nenhum deles viu foi a figura que se aproximava do gabinete do chefe da pista. O Mestre-Sargento Carlos “Touro” Gaspar comandava os programas de tiro de precisão há quinze anos. Treinara atiradores para três unidades diferentes e certificara mais de duzentos especialistas. O rosto marcado pela exposição ao sol e aos binóculos era lendário.
Ele estava a caminho da Pista 7 quando ouviu os comentários. Ao aproximar-se, reparou na mulher sentada contra a parede, a postura perfeita e a respiração controlada a chamarem a sua atenção profissional. Mas foi outra coisa que o fez parar. Quando Mariana se mexeu ligeiramente, o casaco deslocou-se, revelando um pequeno símbolo no colarinho – algo que apenas quem soubesse o que procurar notaria.
Um alvo cruzado, com uma frase pequena e discreta: “Atiradora de Elite, Divisão de Precisão”. O sangue gelou-lhe nas veias.
Não era um símbolo comum. Não era algo que se comprasse ou conquistasse em treinos normais. Era emitido por uma organização específica, que operava nas sombras, onde os disparos mais difíceis eram feitos por pessoas cujos nomes nunca apareciam em registos. Aquela mulher não era uma contratada qualquer. Era uma profissional das operações mais secretas, e os seus homens tinham-se estado a rir dela nos últimos dez minutos.
O Mestre-Sargento Gaspar aproximou-se do grupo, o rosto sério. “Chefe Matias,” disse com a autoridade de décadas de serviço, “você e os seus homens precisam de perceber algo sobre a senhora que têm estado a ignorar.”
Mostrou os documentos de Mariana. “Isto não é autorização de contratada civil. Isto é assinado por oficiais com classificações superiores às minhas. A Sr.ª Sousa não está aqui para tirar fotos.”
Os operadores trocaram olhares. Algo nas palavras do Gaspar deixara claro que tinham cometido um erro grave.
“Mostrem-lhe o símbolo,” ordenou.
Mariana inclinou a cabeça, revelando o pequeno emblema no colarinho: um alvo cruzado com “Atiradora de Elite”.
“Nunca vi isto,” murmurou Carvalho. “Que unidade usa este símbolo?”
“A que não existe em registos,” respondeu Gaspar. “A que opera onde a maioria nunca irá.”
Virou-se para Mariana. “Quantos alvos confirmados tem a mais de mil metros?”
“Quinze confirmados, Mestre-Sargento. Vinte e dois prováveis.”
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Quinze tiros mortalmente precisos a distâncias impossíveis. Números que colocavam Mariana entre os melhores atiradores da história militar.
O Gaspar olhou para o grupo. “O que estão prestes a ver vai redefinir o que sabem sobre tiro de precisão.”
Na pista, Mariana preparou-se com calma. O rifle era uma obra de arte – cano personalizado, mira de precisão, tudo ajustado ao milímetro. O vento soprava irregularmente, o calor criava miragens que desviavam os melhores tiros.
O primeiro disparo partiu com precisão cirúrgica. No painel eletrónico, um ponto apareceu exatamente no centro – um resultado impressionante a mil metros.
O segundo quase tocou no primeiro. O terceiro completou um triângulo que dava para tapar com uma moeda. Ao décimo, o grupo media menos de três centímetros – algo inédito naquela distância.
Ninguém falou. Ninguém respirava.
Quando Mariana terminou, o Gaspar foi ter com ela. “Nunca vi nada assim.”
“Não me falta prática,” respondeu ela com calma. “Vinte anos em sítios onde errar significava mortes.”
Antes de sair, Mariana cruzou-se com uma jovem atiradora, a Cabo Ana Costa,E quando Mariana partiu, deixou para trás não apenas recordações de tiros impossíveis, mas a lição silenciosa de que a verdadeira elite nunca precisa provar nada a ninguém, exceto a si mesma.