O apito do trem cortou o céu ao entardecer, revelando um horror que mudaria tudo

5 min de leitura

**Dia 15 de Junho**

Pensava que seria mais uma tarde tranquila. Afonso Lopes, um agricultor viúvo de 36 anos, caminhava para casa pela antiga linha férrea que cortava os campos atrás da sua herdade. As botas rangiam na gravilha, cada passo ecoava como o ritmo de uma vida vivida na solidão. Desde que perdera a esposa, há dois anos, os dias de Afonso eram sempre iguais: trabalho no campo, silêncio e o riso cada vez mais raro da sua filha Leonor, de 10 anos, que estudava na cidade.

Mas aquela tarde, a quietude foi quebrada.

Um grito agudo e desesperado rasgou o ar. Não era de animal, era humano, cheio de terror. Afonso parou de repente. Outro grito veio, mais fraco, seguido do trovão distante de um comboio a aproximar-se.

Sem pensar, começou a correr. O coração batia-lhe com força, a terra tremia sob os pés. Ao virar a curva, a cena que o esperou gelou-lhe o sangue.

Uma jovem estava amarrada aos carris, pulsos atados com corda grossa, tornozelos presos ao trilho de aço. O vestido rasgado colava-se à pele ferida, o cabelo castanho, comprido, emaranhado em terra e suor. Mas o que lhe revirou o estômago foi o bebé minúsculo que ela apertava contra o peito, envolto num coberto esfarrapado, a chorar baixinho.

O apito do comboio crescia; faltavam segundos.

“Não, não, não…!” Ofegou Afonso, lançando-se para ela. Ajoelhou-se ao seu lado. “Fica quieta! Vou tirar-te daqui!”

Os olhos dela abriram-se devagar. “Por favor… o meu bebé”, sussurrou, quase perdido no rugido do comboio.

Afonso puxou da faca e cortou as cordas. O comboio estava tão perto que já sentia o chão a tremer e os carris a vibrar. A lâmina escorregou-lhe das mãos suadas.

“Vamos!”, gritou, serrando com mais força. A corda cedeu. Puxou-a para longe dos carris, rolando com a mãe e a criança nos braços, mesmo quando o comboio passou a toda a velocidade, com tanta força que o atirou ao chão.

O barulho ensurdecia, o calor e o vento queimavam-lhe o rosto. Quando o comboio passou, Afonso ficou imóvel, ofegante, com a mulher e o bebé nos braços—vivos.

Durante um longo momento, apenas os olhou, chocado por quão perto a morte estivera. A mulher tremia, abraçando o filho.

“Obrigada…”, murmurou, fraca.

Mas quando Afonso lhe olhou nos olhos, viu mais do que medo—um segredo que ela não estava pronta para contar.

Afonso levou-a, com o bebé, para a sua pequena quinta nos arredores da vila. O sol já se pusera quando chegaram. A velha vizinha, Dona Amélia, ouviu o barulho e acorreu.

“Meu Deus!”, exclamou, ao ver os pulsos da mulher, vermelhos e em sangue. “O que aconteceu?”

“Encontrei-a amarrada aos carris”, disse Afonso, sem fôlego. “Alguém fez-lhe isto.”

Deitaram-na no sofá e Dona Amélia pegou no bebé com cuidado. A criança, com apenas semanas de vida, choramingava. Afonso soube então que a mulher se chamava Inês Martins. No início, falava pouco, ainda a tremer do susto.

Naquela noite, Afonso não dormiu. Reviu a cena vezes sem conta: as cordas, o choro do bebé, o terror nos olhos de Inês. Porque faria alguém uma coisa assim?

De manhã, Inês estava acordada, mas pálida. Afonso levou-lhe comida e perguntou, suave: “Quem te prendeu ali?”

Os lábios tremeram-lhe. “Estão à minha procura”, sussurrou. “Eles vão voltar.”

“Quem?”

Ela hesitou, apertando o bebé. “A família do meu marido. Acham que os envergonhei. Quando ele morreu, culparam-me… disseram que manchei o nome deles. Fugi, mas encontraram-me.” A voz quebrou. “Queriam garantir que eu nunca mais falasse.”

Afonso cerrou os maxilares. “Aqui estás segura.”

Mas Inês abanou a cabeça. “Ninguém está seguro quando há vingança no ar.”

Nos dias seguintes, recuperou devagar, sob os cuidados de Dona Amélia. Ajudava nas tarefas, dava biberão ao bebé e até começou a sorrir, embora os olhos se fixassem muitas vezes nas colinas ao longe, como se esperasse algo—ou alguém.

Uma tarde, Afonso voltou da vila com más notícias. O merceeiro dissera-lhe que dois homens perguntavam por uma mulher com um bebé, oferecendo dinheiro por informações.

Naquela noite, com o vento a uivar lá fora, Afonso carregou a espingarda e sentou-se junto à janela. A lamparina tremeluzia. Inês estava à porta, o bebé ao colo. Os olhares cruzaram-se—medo no dela, determinação no dele.

“Se vierem”, disse Afonso, baixinho, “terão de passar por cima de mim.”

Mal acabou de falar, o som de cascos distantes ecoou pelo vale.

Os cavalos aproximaram-se, firmes e decididos. Afonso apertou a espingarda. A luz da lua revelou três cavaleiros que galopavam em direção à casa.

Dona Amélia apagou a lamparina. “Encontraram-na”, murmurou.

Inês agarrou o bebé com mais força, a tremer. “São eles.”

Os cavaleiros pararam à beira do curral. O maior—um homem corpulento com uma cicatriz na cara—gritou: “Sabemos que ela está aí! Afasta-te, campónio! Ela é nossa!”

Afonso saiu para o alpendre, espingarda em riste. “Não pertence a ninguém”, disse, firme. “Dá meia-volta e vai-te embora.”

O homem riu-se com desdém. “Vais arrepender-te disto.”

Antes que pudesse sacar da arma, Afonso disparou um tiro de aviso, que passou rente à sua orelha. Os homens hesitaram. De repente, o caos instalou-se. Um deles atirou, partindo uma janela. Dona Amélia gritou. Inês agachou-se, protegendo o bebé.

Afonso agiu com calma e precisão, disparando e empurrando-os para trás. Um homem caiu do cavalo; outro escondeu-se atrás de um carro de bois. O líder praguejou, recarregando a pistola. “Vais pagar por isto!”

Dentro de casa, Inês deixou o bebé em segurança e pegou no pequeno revólver que Afonso guardava na cozinha. Aproximou-se silenciosamente da janela. Quando o homem da cicatriz apontou para as costas de Afonso, Inês puxou o gatilho. O tiro ecoou na noite. O homem caiu, a arma escorregando-lhe das mãos.

Os outros fugiram em pânico. Os cavalos desapareceram na escuridão, os cascos perderam-se no silêncio.

Afonso virou-se, estupefacto. Inês continuava a tremer, fumo a sair da pistola. Lágrimas escorriam-lhe pelas faces.

“Eu… eu tive de o fazer”, sussurrou.

Afonso baixou a espingarda e aproximou-se. “Salvaste-me a vida”, disse-lhe, baixinho.

O guarda chegou mais tarde, alertado pelo barulho. O homem ferido sobreviveuO resto da história tornou-se uma lenda na região, lembrando a todos que, mesmo nas horas mais escuras, a coragem e a bondade podem transformar o medo em esperança.

Leave a Comment