Num boteco à beira da estrada, uma criança me fez chorar com apenas uma pergunta

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PARTE 1: A Proposta

A gente se acostuma com os olhares. É a primeira coisa que você aprende quando veste o colete. Aprende que, para o resto do mundo, você não é mais uma pessoa. Você é um número. Uma ameaça. O motivo pelo qual trancam as portas do carro quando você para no sinal vermelho.

Eu estava sentado no Café do Zé, ali perto da Estrada Nacional 2, no Alentejo, tentando saborear um café tão amargo que parecia borracha queimada e um pastel de nata que devia ter sido feito na semana passada. Eram por volta das duas da tarde de uma terça-feira. O lugar estava calmo—apenas o zumbido do frigorífico atrás do balcão e o murmúrio baixo de dois camionistas no fundo.

Eu ocupava espaço. Eu sei disso. Tenho um metro e noventa, cento e trinta quilos de músculos e barba por fazer, vestindo um colete que grita “afasta-te” para gente decente. O capacete estava em cima da mesa, arranhado e cheio de autocolantes de tasquinhas entre aqui e Faro. Não estava à procura de confusão. Só de café.

Mas o clima mudou no instante em que a campainha da porta tocou.

Não era a polícia. Nem um rival.

Era uma menina. Não devia ter mais de seis anos. Vestia um vestido cor-de-rosa já gasto, com manchas de terra na barra, e sapatilhas com os velcros a soltar-se. O cabelo loiro estava emaranhado, como se tivesse corrido contra o vento.

O café ficou em silêncio. Daqueles silêncios que dava para ouvir um alfinete cair. A empregada, uma senhora simpática chamada Rosa que me servira café sem me olhar nos olhos, parou no meio do gesto. Os camionistas pararam de mastigar.

A menina ficou parada à porta, a examinar o espaço. Os olhos eram grandes, azuis e cheios de medo. Mas havia mais neles. Determinação.

Olhou para os camionistas e abanou a cabeça. Olhou para o homem de fato a comer uma salada no canto. Abanou a cabeça outra vez.

Depois, os olhos encontraram os meus.

Suspirei por dentro. Ótimo. Lá vem ela. Vai perguntar onde fica a casa de banho, e a mãe vai aparecer aos berros porque olhei para a filha dela.

Mas ela não perguntou pela casa de banho.

Começou a andar. Um pé à frente do outro, marchando pelo chão de tijoleira gasto. Estava a vir direitinho para o motard assustador no canto.

“Querida, não incomodes o senhor,” sussurrou Rosa, a voz a tremer um pouco.

A menina ignorou-a. Chegou ao pé da minha mesa. Era tão pequena que o nariz dela mal passava da borda. Baixei lentamente a chávena de café, encarando-a por cima dos óculos escuros. Não sorri. Não franzi o cenho. Só esperei.

Ela enfiou a mãozinha no bolso e tirou um punhado de qualquer coisa. Atirou aquilo em cima da mesa, ao lado do pastel.

Era uma nota de cinco euros amassada, duas moedas de cinquenta cêntimos e um cêntimo.

Olhou-me nos olhos, o queixo a tremer, esforçando-se para ser corajosa.

“É dos Demónios da Estrada?” perguntou. A voz era fina, mas alta o suficiente para todos ouvirem.

Recostei-me, o couro do colete a ranger. “Ando com um clube, miúda. Porquê?”

“O meu pai diz que vocês são os maus,” ela disse. “Diz que batem nas pessoas e que ninguém mexe convosco.”

Um músculo na minha mandíbula contraiu-se. “O teu pai fala muito.”

“Ele diz que vocês são monstros,” continuou, as lágrimas a encherem os olhos azuis. “Diz que toda a gente tem medo de vocês.”

Olhei em volta. Os camionistas estavam atentos. Rosa segurava a cafeteira como se fosse uma arma. Sim, todos tinham medo.

“O que é que queres, miúda?” perguntei, a voz grave. “Estou a comer.”

Ela empurrou o dinheiro amassado para mim.

“Quero contratar-te,” disse.

Pisqueei os olhos. “Contratar-me?”

“Cinco euros e um cêntimo,” disse, apontando para o dinheiro. “É tudo o que tenho. Chega?”

“Chega para quê?”

Ela respirou fundo, o peito a tremer. “Para me levares a casa.”

Franzi a testa. “Onde moras?”

“A três quarteirões daqui.”

“Porque não vais sozinha? Ou chamas os teus pais?”

Ela baixou os olhos para as sapatilhas. “Não posso ir sozinha. Ele está lá.”

O ar no café pareceu ficar dez graus mais frio.

“Quem está lá?” perguntei, baixando a voz para só ela ouvir.

“O homem mau,” sussurrou. “O meu padrasto. Ele… está outra vez a partir coisas. A minha mãe está a chorar. E ele disse que se eu voltasse para dentro, ia dar-me uma lição.”

O sangue gelou-me nas veias. Gelado que queima.

“Ele trancou-te cá fora?”

“Não,” limpou o nariz. “Eu fugi. Mas esqueci-me do Ursinho. E a minha mãe precisa de mim. Tenho de voltar. Mas tenho medo. Preciso de um monstro.”

Olhou para mim, as lágrimas a escorrer.

“Preciso de um monstro para assustar o homem mau. Por favor. Dou-te todo o meu dinheiro.”

Olhei para os cinco euros. Olhei para o rosto assustado dela. Olhei para os julgamentos nos olhos dos outros clientes, que não faziam ideia do que aquela menina estava a pedir.

Levantei-me.

A cadeira raspou no chão. Fiquei a pairar sobre ela. Rosa soltou um suspiro atrás do balcão, a mão a tremer perto do telefone, provavelmente para ligar para o 112.

Estendi a mão—uma mão do tamanho de um presunto, tatuada nos nós dos dedos. Empurrei o dinheiro de volta para ela.

“Fica com o teu dinheiro, miúda,” disse, a voz rouca.

A cara dela desmontou-se. Parecia que o mundo dela tinha acabado. “Não chega?”

Peguei no capacete. Tirei os óculos escuros para ela me ver os olhos.

“Não é por causa do dinheiro,” disse. “Não se contrata um motard com notas. Contrata-se com respeito. E tu mostraste mais coragem do que qualquer homem nesta sala.”

Saí da mesa e olhei para ela.

“Vamos buscar o Ursinho.”

PARTE 2: A Caminhada

Deixei uma nota de vinte euros em cima da mesa pelo pastel que não acabei e dirigi-me à porta. A menina, que se chamava Leonor, trotou para acompanhar o meu passo largo.

Quando saímos do café, o calor do Alentejo abafou-nos. A minha mota, uma Harley customizada, brilhava ao sol.

“Vamos de mota?” perguntou, a olhar para ela com admiração.

“Hoje não,” respondi. “Vamos a pé. Quero que ele nos veja chegar.”

Aquela caminhada foram os três quarteirões mais longos da minha vida. Leonor esticou a mão e agarrou a minha. A mãozinha dela desapareceu na minha palma. A minha luva de couro era áspera, a pele dela macia. O contraste era absurdo. Um gigante de barba a dar a mão a uma menina de vestido cor-de-rosa.

Os carros abrandaram ao passar por nós. As pessoas fitaram-nosQuando chegamos à casa dela e o padrasto nos viu, ele fugiu sem dizer uma palavra, e a mãe de Leonor abraçou-a tão forte que parecia nunca mais querer soltar.

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