O tribunal cheirava levemente a lixívia e esperanças perdidas.
Eu estava ali, com o meu vestido de segunda mão, segurando uma mala desbotada que um dia pertencera à minha mãe. Do outro lado da mesa, o meu ex-marido, Ricardo, assinava os papéis do divórcio, com um sorriso satisfeito que cortava o rosto como uma navalha. Ao lado dele, a noiva dele — jovem, elegante e reluzente num vestido de seda de marca — inclinou-se e sussurrou algo que o fez rir.
“Nem sequer te dignaste a vestir-te melhor, Inês?”, perguntou ela, com um tom venenoso disfarçado de charme.
Ricardo nem sequer olhou para mim. “Ela sempre ficou presa no passado”, respondeu, friamente, atirando a caneta para o lado. “Parece que vai ficar por lá.”
O advogado empurrou os últimos documentos na minha direção. As minhas mãos tremiam enquanto rabiscava o meu nome, pondo fim a doze anos de um casamento que se tornara numa lenta queima de deceção. O acordo: dez mil euros e um silêncio pesado o suficiente para me esmagar.
Quando saíram, o riso deles ficou no ar, leve e cruel, como um perfume que não desaparece. Fiquei sentada por muito tempo, a observar a tinta secar ao lado da minha assinatura, percebendo que o meu mundo tinha desmoronado naquele lugar estéril.
Então, o telemóvel vibrou.
Um número desconhecido.
Por um instante, pensei em ignorar. Mas algo lá dentro — talvez instinto, talvez desespero — fez-me atender.
“Senhora Inês Tavares?”, uma voz masculina e calma disse. “Falo em nome do advogado David Sousa, do escritório Sousa & Albuquerque. Lamento incomodá-la, mas tenho notícias urgentes sobre o seu tio-avô, o Sr. António Mendes.”
O nome deixou-me sem reação. António Mendes? Não o via desde a adolescência. Ele sempre fora o pária da família — ou talvez eu o fosse. Depois da morte dos meus pais, os Mendes desapareceram da minha vida por completo.
“Infelizmente, ele faleceu na semana passada”, continuou o homem. “Mas nomeou-a como única herdeira.”
Pisquei, incrédula. “Deve haver engano.”
A voz de David manteve-se calma. “Não há erro, Senhora Tavares. O Sr. Mendes deixou-lhe toda a sua fortuna — incluindo a posse da Mendes Energia.”
Congelei. “Quer dizer… a Mendes Energia? A empresa de energia?”
“Exatamente”, confirmou. “Agora é a acionista maioritária e beneficiária de uma empresa avaliada em milhares de milhões. No entanto… há uma condição.”
As palavras dele pairaram no ar como um trovão prestes a rebentar.
Enquanto olhava para o meu reflexo na janela do tribunal — o vestido barato, o cansaço nos olhos, a sombra de uma mulher que todos deram como perdida — percebi que a minha história não terminara. Estava a ser reescrita.
Dois dias depois, encontrei-me numa sala de reuniões no 50.º andar de um arranha-céus em Lisboa. A cidade brilhava lá em baixo, o Tejo cintilava ao longe. Tudo parecia demasiado grande, demasiado perfeito, demasiado irreal.
À minha frente estava David Sousa, o mesmo advogado da chamada, a abrir um dossiê tão espesso que poderia servir de âncora. “Antes de prosseguirmos”, disse, “precisa de entender a condição do testamento do seu tio.”
Acenei lentamente, preparando-me para o senão.
“O Sr. Mendes especificou que tem de assumir o cargo de CEO da Mendes Energia durante pelo menos um ano inteiro”, explicou. “Não pode vender nem delegar as suas ações nesse período. Só depois de doze meses consecutivos sem escândalos ou colapso financeiro é que a herança será totalmente sua.”
Fitei-o. “Eu sou… professora de arte. Nunca gerei um negócio.”
“O seu tio sabia”, disse David. “Ele acreditava que a sua integridade — livre de ganância — poderia devolver a alma à empresa.”
Um riso amargo escapou-me. “Ou então quis pôr-me à prova do além.”
David sorriu levemente. “Ele também lhe deixou um bilhete.” Entregou-me uma folha escrita com a caligrafia elegante e deliberada do meu tio.
*Inês,
Construí um império, mas perdi a consciência no processo.
Tu ainda a tens.
Lidera com o coração, e talvez salves o que eu não consegui.*
A sala desfocou-se. Senti-me aterrorizada e, estranhamente, viva.
“Eu aceito”, disse, baixinho, surpreendendo-me a mim mesma.
Naquela noite, sentei-me no meu pequeno apartamento, cercada por pilhas de documentos legais. O meu gato, Bento, ronronava no meu colo enquanto os meus pensamentos aceleravam. Como é que alguém como eu poderia liderar uma empresa com vinte mil pessoas?
Então, a voz de Ricardo ecoou na minha mente: *Tu pertences ao passado.*
Não mais.
Na manhã seguinte, entrei na Mendes Energia como a nova CEO. A sala de reuniões silenciou-se quando entrei — sussurros, olhares trocados, até uns sorrisinhos dos executivos.
“Bom dia”, disse, forçando um sorriso calmo. “Vamos começar.”
E assim, a minha transformação começou — de ex-mulher descartada para uma mulher à beira da reinvenção.
Mas entre aqueles rostos polidos estava um que se tornaria o meu maior adversário.
Tiago Neves.
O Diretor de Operações da empresa. Carismático, calculista, com olhos que não revelavam nada. Desde o início, deixou claro que não acreditava em mim.
“Está completamente fora da sua liga, Senhora Tavares”, disse-me depois da primeira reunião. “A Mendes Energia não funciona com sentimentalismos. Construímos redes elétricas, não sonhos de aguarelas.”
“Eu vou aprender”, respondi, firme.
Ele sorriu. “Vou garantir que sim.”
A partir daí, Tiago sabotou-me em cada oportunidade — questionando as minhas decisões, desviando comunicações, vazando documentos internos para a imprensa. Os acionistas começaram a perder a confiança. Os jornais chamavam-me *A Herdeira Acidental*.
Ainda assim, recusei-me a desmoronar.
Todas as noites, mergulhava em estudos — relatórios financeiros, modelos de engenharia, tendências de mercado — até que a linguagem corporativa se tornou natural. Conheci todos, desde os membros do conselho até aos funcionários da limpeza, fazendo perguntas que ninguém mais fazia. Lentamente, a empresa começou a ver-me de outra forma.
Até que, uma manhã, tudo mudou.
Uma contabilista discreta, a Joana, entrou no meu gabinete, nervosa. “Devia ver isto”, murmurou, colocando uma pasta em cima da mesa.
Dentro estavam registos — transferências para contas offshore, auditorias falsificadas. A assinatura do Tiago estava em todo o lado.
O meu pulso acelerou. Ele não estava só a minar-me — estava a roubar a empresa.
No dia seguinte, convoquei uma reunião de emergência. Tiago entrou atrasado, a confiança intacta.
“Qual é o motivo disto?”, perguntou, casual.
Empurrei a pasta na sua direção. “Porque não nos explica?”
A sala ficou em silêncio. O rosto dele perdeu a cor enquanto lia as provas.
Em horas, foi escoltado para fora pela segurança. As manchetes do dia seguinte gritavam: *”Nova CEO Descobre Fraude de Milhões na Mendes Energia”*.
As luzes da cidade brilhavam através das janelas, e pela primeira vez, senti que o meu destino estava finalmente nas minhas próprias mãos.