O tribunal cheirava discretamente a desinfetante e esperanças perdidas.
Ali estava eu, vestida com um vestido de segunda mão, segurando uma bolsa desbotada que um dia pertenceu à minha mãe. Do outro lado da mesa, o meu ex-marido, Rui, assinava os papéis do divórcio com um sorriso de satisfação que cortava como uma faca. Ao lado dele, a noiva—jovem, impecável, reluzente em seda de marca—inclinou-se e sussurrou algo que o fez rir.
“Nem sequer te dignaste a vestir-te melhor, Beatriz?” perguntou ela, com um tom envenenado disfarçado de charme.
Rui nem sequer ergueu o olhar. “Ela sempre ficou presa no passado,” disse friamente, atirando a caneta para o lado. “Parece que vai ficar lá.”
O advogado empurrou os documentos finais na minha direção. As minhas mãos tremiam enquanto rabiscava o meu nome, pondo fim a doze anos de um casamento que se tornara num lento desgosto. O acordo: dez mil euros e um silêncio sufocante o suficiente para me esmagar.
Quando saíram, as suas gargalhadas ecoaram, leves e cruéis, como um perfume que não desaparece. Fiquei sentada por um longo tempo, a observar a tinta secar ao lado da minha assinatura, percebendo que o meu mundo acabara de ruir naquele ambiente estéril.
Então, o telemóvel vibrou.
Um número desconhecido.
Por um segundo, pensei em ignorar. Mas algo no fundo de mim—talvez instinto, talvez desespero—obrigou-me a atender.
“Dona Beatriz Costa?” uma voz masculina e serena perguntou. “Falo do Dr. Henrique Sousa, do escritório Sousa & Carvalho. Peço desculpa pelo incómodo, mas tenho notícias urgentes sobre o seu tio-avô, o Sr. Artur Mendes.”
O nome deixou-me sem reação. Artur Mendes? Não o via desde a adolescência. Ele sempre fora o pária da família—ou talvez eu fosse. Depois da morte dos meus pais, os Mendes tinham desaparecido da minha vida.
“Infelizmente, ele faleceu na semana passada,” continuou o homem. “Mas nomeou-a como sua única herdeira.”
Pisquei, incrédula. “Deve haver engano.”
A voz do Dr. Henrique manteve-se calma. “Não há erro, Dona Beatriz. O Sr. Mendes deixou-lhe toda a sua fortuna—incluindo a posse da Mendes Energia.”
Congelei. “Quer dizer… a Mendes Energia? A empresa de energia?”
“Exatamente,” confirmou. “Agora é a acionista maioritária de uma empresa avaliada em milhares de milhões de euros. Contudo… há uma condição.”
As suas palavras pairaram no ar como um trovão prestes a rebentar.
Ao olhar para o meu reflexo na janela do tribunal—o vestido barato, o cansaço nos olhos, o espectro de uma mulher que todos ignoraram—percebi que a minha história não estava a acabar. Estava a ser reescrita.
Dois dias depois, estava numa sala de reuniões no 50º andar de um arranha-céus em Lisboa. A cidade brilhava lá em baixo, o Tejo cintilando ao longe. Tudo parecia demasiado grande, demasiado imponente, demasiado irreal.
À minha frente, o Dr. Henrique abria um arquivo tão espesso que poderia âncorar um navio. “Antes de avançarmos,” disse ele, “há uma cláusula no testamento do seu tio.”
Acertei devagar, preparando-me para a condição.
“O Sr. Mendes estipulou que tem de assumir o cargo de CEO da Mendes Energia durante, pelo menos, um ano,” explicou. “Não pode vender nem delegar os seus créditos durante esse período. Só depois de doze meses consecutivos sem escândalos ou falência—é que a herança será sua.”
Fitei-o. “Eu… dou aulas de arte. Nunca gerei uma empresa.”
“O seu tio sabia,” disse Henrique. “Ele acreditava que a sua integridade—livre da ganância—poderia devolver a alma à empresa.”
Um riso amargo escapou-me. “Ou queria testar-me do além.”
Henrique sorriu ligeiramente. “Ele também lhe deixou uma nota.” Entregou-me uma folha escrita com a letra elegante do meu tio.
Beatriz,
Construí um império, mas perdi a consciência no caminho.
Tu ainda tens a tua.
Lidera com coração, e talvez salves o que eu não consegui.
A sala desfocou. Senti-me aterrorizada e, estranhamente, viva.
“Vou fazê-lo,” disse em voz baixa, surpreendendo-me a mim mesma.
Naquela noite, sentei-me no meu pequeno apartamento, cercada por montes de documentos legais. O meu gato, Gaspar, ronronava no meu colo enquanto os meus pensamentos aceleravam. Como é que alguém como eu poderia liderar uma empresa com vinte mil pessoas?
Então, a voz do Rui ecoou na minha mente: Tu pertences ao passado.
Não mais.
Na manhã seguinte, entrei na Mendes Energia como a nova CEO. A sala de reuniões silenciou quando entrei—sussurros, olhares trocados, até uns sorrisos irónicos dos executivos.
“Bom dia,” disse, forçando um sorriso calmo. “Vamos começar.”
E assim começou a minha transformação de ex-mulher abandonada para mulher à beira de uma reinvenção.
Mas entre aqueles rostos polidos estava um que se tornaria o meu maior adversário.
José Matos.
O Diretor de Operações da empresa. Carismático, calculista, com olhos que não revelavam nada. Desde o início, deixou claro que não acreditava em mim.
“Está completamente perdida, Dona Beatriz,” disse ele após a primeira reunião. “A Mendes Energia não funciona com sentimentalismos. Nós construímos redes elétricas, não sonhos de aguarela.”
“Vou aprender,” respondi com firmeza.
Ele sorriu com superioridade. “Vou garantir que aprenda.”
Daquele momento em diante, José sabotou-me em cada oportunidade—questionando as minhas decisões em reuniões, desviando comunicações, filtrando notas internas para a imprensa. Os acionistas começaram a perder a confiança. A imprensa apelidou-me de “A Herdeira por Acaso.”
Ainda assim, recusei-me a desmoronar.
Todas as noites, mergulhava em relatórios financeiros, modelos de engenharia, tendências de mercado—até a linguagem corporativa se tornar natural. Conheci todos, desde membros do conselho a empregados da limpeza, fazendo perguntas que ninguém se importava em fazer. Lentamente, a empresa começou a ver-me de forma diferente.
Até que, uma manhã, tudo mudou.
Uma contabilista discreta, chamada Filipa, entrou no meu gabinete, nervosa. “Deveria ver isto,” murmurou, deixando uma pasta em cima da mesa.
Dentro estavam registos—transações para contas offshore, auditorias falsificadas. A assinatura do José estava em todo o lado.
O meu pulso acelerou. Ele não estava só a minar-me—estava a roubar a empresa.
No dia seguinte, marquei uma reunião de emergência. José entrou atrasado, com a confiança inabalável.
“Que se passa?” perguntou descontraidamente.
Empurrei a pasta para ele. “Porque não explica você?”
A sala ficou em silêncio. O rosto dele perdeu a cor ao folhear as provas.
Em horas, foi expulso pela segurança. Na manhã seguinte, os cabeçalhos gritavam: “Nova CEO Descobre Fraude Gigantesca na Mendes Energia.”
As ações da empresa dispararam. E, pela primeira vez, o meu nome foiE, enquanto assistia ao pôr-do-sol sobre o Tejo, percebi que a mulher que outrora fora esmagada pelo desprezo agora construía o seu próprio império—não com cinismo, mas com a coragem de quem finalmente aprendera o verdadeiro valor de si mesma.