Durante doze anos de escola, o apelido de “filha da catadora de lixo” foi como uma cicatriz impossível de apagar para Beatriz, uma menina do bairro da Mouraria, em Lisboa, que cresceu sem pai.
O pai morreu antes dela nascer, deixando-a com uma mãe magrinha, de mãos calejadas e cheirando a suor e poeira: Dona Rosa, uma mulher que catava lixo junto aos trilhos do comboio e nos lixões da cidade para sustentar a filha.
No primeiro dia da primária, Beatriz levou uma mochila velha costurada pela mãe. O uniforme estava desbotado e remendado nos joelhos, e os sapatos eram de plástico, rachados de tanto uso.
Logo que entrou na sala, começaram os murmúrios e risinhos de alguns colegas:
— “Essa não é a filha da mulher do lixo?”
— “Cheira a aterro.”
No recreio, enquanto os outros comiam sanduíches de fiambre e massas, Beatriz sentava-se em silêncio debaixo da amendoeira, comendo devagar uma fatia de pão sem nada.
Uma vez, um colega empurrou-a, e o pão caiu no chão. Mas, em vez de ficar zangada, Beatriz apanhou-o, limpou-o com a mão e comeu-o outra vez, segurando as lágrimas.
Os professores sentiam pena, mas não podiam fazer grande coisa.
Assim, todos os dias, Beatriz voltava para casa com o coração pesado, mas com a promessa da mãe a ecoar-lhe na mente:
— “Estuda, filha. Para não teres de viver como eu.”
No secundário, tudo ficou mais difícil.
Enquanto os colegas chegavam com telemóveis novos e ténis de marca, ela continuava com o mesmo uniforme remendado e a mochila cosida com linha vermelha e branca.
Depois das aulas, não saía com amigos. Em vez disso, ia para casa ajudar a mãe a separar garrafas e latas, para vender no ferro-velho antes de anoitecer.
As mãos dela estavam muitas vezes cheias de feridas e os dedos inchados, mas nunca se queixava.
Um dia, enquanto estendiam plásticos ao sol atrás da barraca onde viviam, a mãe sorriu e disse-lhe:
— “Beatriz, um dia vais subir a um palco, e eu vou aplaudir-te orgulhosa, mesmo que esteja coberta de pó.”
Ela não respondeu. Apenas escondeu as lágrimas.
Na universidade, Beatriz dava explicações para ajudar nas despesas.
Todas as noites, depois de ensinar, passava pelo lixão onde a mãe a esperava, para a ajudar a carregar os sacos de plástico.
Enquanto os outros dormiam, ela estudava à luz de uma vela, com o vento a entrar pela janelinha da barraca.
Doze anos de sacrifícios.
Doze anos de gozos e silêncio.
Até que chegou o dia da formatura.
Beatriz foi nomeada “Melhor Aluna do Ano” por toda a escola.
Vestia o velho fato branco arranjado por Dona Rosa.
Na última fila do auditório, a mãe estava sentada — suja, com gordura nos braços, mas com um sorriso cheio de orgulho.
Quando chamaram Beatriz ao palco, todos bateram palmas.
Mas, quando pegou no microfone, a sala ficou em silêncio.
— “Durante doze anos, chamaram-me a filha da catadora de lixo”, começou, com a voz a tremer.
— “Não tenho pai. E a minha mãe — aquela mulher ali atrás — criou-me com as suas mãos acostumadas a mexer no lixo.”
Ninguém falou.
— “Quando era pequena, tinha vergonha dela. Envergonhava-me de a ver apanhar garrafas em frente à escola.
Mas um dia percebi: cada garrafa, cada pedaço de plástico que a minha mãe apanhava, era o que me permitia entrar nas aulas todos os dias.”
Respirou fundo.
— “Mãe, perdoa-me por ter tido vergonha de ti. Obrigada por remendares a minha vida como remendavas os buracos do meu uniforme.
Prometo que, a partir de hoje, tu serás o meu maior orgulho. Já não vais ter de baixar a cabeça no lixão, mãe. Serei eu quem a levanta por nós duas.”
O diretor não conseguiu dizer nada.
Os alunos começaram a enxugar as lágrimas.
E na última fila, Dona Rosa, a catadora de lixo magrinha e morena, tapou a boca, chorando de felicidade silenciosa.
Desde então, ninguém mais lhe chamou “filha da catadora de lixo”.
Agora, ela é a inspiração da escola inteira.
Os antigos colegas, os mesmos que a evitavam, vieram um a um pedir-lhe desculpa e querer ser seus amigos.
Mas todas as manhãs, antes de ir para a universidade, ainda se pode vê-la debaixo da amendoeira, a ler um livro, a comer pão e a sorrir.
Porque, para a Beatriz, não importa quantas honras receba, o prémio mais valioso não é um diploma nem uma medalha — é o sorriso da mãe que um dia lhe deu vergonha, mas que nunca, nunca se envergonhou dela.