Os dedinhos dele ainda estavam manchados de tinta de caneta, e a capa do Super-Homem estava ao contrário.
O café ficou em silêncio absoluto quando quinze membros dos Lobos de Ferro MC encararam o miúdo que não devia pesar trinta quilos nem com os bolsos cheios de pedras.
“A minha mãe disse que não posso pedir-vos isto,” declarou ele, o queixo erguido com desafio. “Mas ela está sempre a chorar, e os meninos maus da escola dizem que o papá não vai para o céu se não houver homens assustadores a protegê-lo.”
Zé Grande — duas missões no Afeganistão, uma caveira tatuada no pescoço — pegou cuidadosamente no papel.
Era um desenho infantil de figuras de pauzinhos em motas, rodeando um caixão, com “POR FAVOR VENHAM” escrito em letras trocadas.
“Onde está a tua mãe, pequenino?” perguntou Zé, com voz suave.
O miúdo apontou para fora da janela, onde uma mulher jovem estava sentada num Toyota velho, com a cabeça entre as mãos. “Ela tem medo de vocês. Toda a gente tem medo de vocês. Por isso é que eu preciso de vocês.”
Eu já tinha visto o Zé partir o maxilar de um gajo por falta de respeito à mota. Mas as mãos dele tremiam enquanto lia o resto do papel — uma data, no dia seguinte, e o endereço do Cemitério da Ribeira.
“Como se chamava o teu pai?” alguém perguntou.
“Agente Marco Ribeiro,” disse o miúdo com orgulho. “Ele era polícia. Um homem mau disparou-lhe.”
O silêncio ficou ainda mais pesado.
Polícias e motards não eram aliados naturais. A maioria de nós já tinha sido chateada, discriminada, até espancada pela polícia. E agora o filho de um agente pedia-nos para honrar o pai caído.
Zé levantou-se devagar. “Como te chamas, Super-Homem?”
“Miguel. Miguel Ribeiro.”
“Então, Miguel Ribeiro,” disse o Zé, ajoelhando-se à altura dele, “diz à tua mãe que o teu pai vai ter o maior, mais barulhento e assustador cortejo para o céu que algum polícia já teve.”
Os olhos do miúdo arregalaram-se. “A sério? Vocês vêm?”
“Meu,” resmungou Cobra do canto, conflituado. “Era polícia.”
“Era pai,” respondeu Zé, sem tirar os olhos do Miguel. “E este guerriro acabou de fazer a coisa mais corajosa que vi este ano.”
O que aconteceu nesse funeral no dia seguinte virou manchete em todo o país.
Na manhã seguinte, cheguei ao cemitério duas horas mais cedo. Pensei que seria o primeiro — talvez ver como estava o ambiente, preparar-me para o desconforto.
Mas estava enganado.
O parque de estacionamento já se enchia de motas. Não só dos Lobos de Ferro, mas de clubes de três distritos. Os Cavaleiros da Morte, as Fénix de Aço, os Ratos do Deserto, até os Cavaleiros de Cristo. A notícia espalhara-se como fogo na noite.
“Isto é de loucos,” murmurei para o Zé, que organizava o estacionamento como um general.
“O miúdo pediu homens assustadores,” encolheu os ombros o Zé. “O miúdo vai ter homens assustadores.”
Às 9h da manhã, mais de trezentas motas estavam ali. O funeral era só às 10, mas nós já estávamos prontos.
Foi então que a polícia começou a chegar.
A tensão estava tão espessa que dava para cortar. Dois grupos que normalmente se evitavam — ou brigavam — ficaram de lados opostos do cemitério.
O Agente Martins, um sargento da esquadra do Ribeiro, avançou. A mão não estava na arma, mas quase.
“O que é que vocês estão aqui a fazer?” O tom não era hostil, mas também não era acolhedor.
Zé aproximou-se. “A prestar respeito.”
“A um polícia? Desde quando é que—”
“Desde que um miúdo de cinco anos entrou num café e pediu,” cortou o Zé. “O filho do teu colega é mais corajoso que a maioria dos homens que conheço.”
Antes que Martins pudesse responder, uma vozinha cortou o ar:
“OS HOMENS ASSUSTADORES VIERAM!”
O Miguel libertou-se da mãe e correu a toda a velocidade, o traje a abanar, a capa do Super-Homem ainda às avessas. Atirou-se para as pernas do Zé, abraçando-as com força.
“Vocês vieram! Vieram mesmo! O papá vai ficar tão seguro agora!”
Vi a expressão do Martins mudar, algo a rachar naquela fachada profissional. Os outros agentes viram também — aquele miúdo agarrado a um motard como se ele fosse a salvação.
A mãe do Miguel, a Elisa, aproximou-se com cautela. Era jovem, talvez vinte e cinco anos, os olhos fundos de tristeza.
“Desculpem,” sussurrou. “Eu disse-lhe para não vos chatear. Nem sei como ele vos encontrou—”
“Minha senhora,” interrompeu o Zé, com gentileza. “O seu filho não fez nada de errado. Ele pediu ajuda. Nós respondemos.”
“Mas o Marco… o meu marido… ele…” a voz dela quebrou. “Ele prendeu alguns dos vossos. Era inflexível com as violações no trânsito. Não percebo porque é que vocês—”
“O seu marido estava a fazer o trabalho dele,” disse a Cobra, avançando. “Nós fazemos o nosso. Hoje, o nosso trabalho é garantir que o filho dele sabe que o pai importou.”
O agente funerário aproximou-se, com ar atordoado. “Desculpem, mas não podemos ter trezentas motas no cortejo. Regulamento municipal—”
“Eu trato disso,” disse o Agente Martins, subitamente.
Todos se viraram para o olhar.