Menina no mercado segura meu braço tatuado e sussurra: ‘Papai quer matar mamãe’

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No meio do corredor de cereais do Pingo Doce, uma menina agarrou meu braço tatuado antes que eu pudesse ver quem a seguia. “O papá quer matar a mamã,” sussurrou, com a voz tão baixa que quase não ouvi.

Sou um motard de sessenta e três anos, coberto de tatuagens e cicatrizes. Já vi de tudo. A guerra colonial. Brigas de tasco. Amigos mortos na estrada. Mas nada me preparou para o terror puro nos olhos daquela criança de seis anos, que se agarrou à minha colete como se fosse a última tábua de salvação.

“Por favor, senhor,” gemeu, escondendo-se atrás da minha perna. “Finja que é o meu pai. Não deixe que ele me leve.”

Olhei para baixo. A menina tinha o cabelo castanho emaranhado e hematomas nos braços. Depois, levantei os olhos e vi *ele*. Um homem de trinta e poucos anos, vermelho, suado, a revistar os corredores como um lobo à caça.

“Leonor!” berrou. “Leonor Isabel, vem aqui já!”

A menina—Leonor—tremia tanto que eu sentia a vibração nas minhas calças. “É o meu pai,” confessou. “Mas ele já não age como o meu pai. Magoou a mamã muito mal. Havia tanto sangue…”

O meu sangue gelou.

“Quão mal?” perguntei em voz baixa, agachando-me ao seu nível, mas sem perder o homem de vista, que se aproximava.

“Ela já não se mexe,” respondeu Leonor, quase inaudível. “Está no chão da cozinha… e o papá disse que se eu contasse a alguém, ele me faria adormecer para sempre também.”

O homem avistou-nos. Primeiro, fixou Leonor. Depois, a mim. Vi os cálculos na sua cabeça. A tentar perceber se me podia vencer. Se valia a pena arriscar arrancar a filha e fugir.

Levantei-me devagar. Um metro e noventa, cento e quinze quilos de puro músculo e cicatrizes. Deixei que visse o meu colete, as insígnias, os nós dos dedos marcados por quarenta anos de lutas.

Deixei que percebesse que, para chegar àquela criança, teria de passar por mim.

“Leonor, vem cá, princesa,” o homem forçou um tom calmo, falso. “O pai andou à tua procura. Precisamos de ir para casa ver a mamã.”

O aperto de Leonor no meu colete tornou-se mais forte. “Não,” soluçou. “Não, não, não.”

Coloquei a mão na sua cabeça. Suave. Protetor. “Ela está bem onde está,” disse para o homem, com uma voz que não era nada gentil. “Acho melhor chamarmos alguém para ver como está a mãe. Só para ter a certeza.”

A expressão do homem mudou. A falsa calma evaporou-se. “É a minha filha. Dê-ma já ou chamo a polícia.”

“Ótima ideia,” concordei, sacando do telemóvel. “Vamos chamá-la. Agora mesmo.”

Enquanto discava o 112, mantive a outra mão na cabeça de Leonor. O homem olhou para o telemóvel. Para mim. Para ela.

“Leonor, vou contar até três—”

“Não vais contar nada,” cortei, com a voz fria como aço. “Vais ficar aí parado enquanto eu chamo a polícia. E se deres um passo na direção desta menina, vais descobrir o que acontece quando se ameaça uma criança à frente de um motard velho que já não tem nada a perder.”

Outros clientes pararam. Observavam. Um funcionário aproximava-se. O homem viu a plateia a formar-se.

E fugiu.

Virou-se e disparou para a saída, como o cobarde que era. O funcionário, um rapaz de vinte anos, tentou persegui-lo, mas gritei: “Deixa-o! Chama a polícia! Diz que há violência doméstica e um possível homicídio na—” Olhei para Leonor. “Menina, qual é a tua morada?”

Leonor recitou-a entre lágrimas. “Rua das Acácias, 1247. A casa amarela com o gradeado partido.”

O funcionário já falava com a emergência. Outros clientes ofereciam ajuda. Uma senhora deu-lhe o casaco, pois a pequena tremia como uma vara verde.

Ajoelhei-me novamente. “Leonor, a polícia está a chegar. Vão ver como está a tua mamã. E vão encontrar o teu pai. Estás segura agora. Prometo.”

“E se ele voltar?” A voz dela era frágil. Partida.

“Então terá de passar por mim primeiro.” Fitou-me. “Tenho uma filha. Trinta e cinco anos. Se alguém a tivesse magoado quando era pequena, teria matado essa pessoa com as minhas mãos. Entendes? Vieste ter com a pessoa certa. Não vou deixar que te aconteça nada.”

A polícia chegou em seis minutos. Três carros, luzes a piscar. Enviaram equipas para a morada de Leonor enquanto dois agentes ficaram connosco.

A agente questionou-me. Contei tudo. Cada palavra. Cada detalhe. A expressão dela endurecia a cada frase.

“Leonor,” a polícia falou suavemente. “Foste muito, muito corajosa. Podes contar-me o que aconteceu com a mamã?”

“Hoje de manhã. Antes do pequeno-almoço. Eles discutiam por dinheiro e depois o papá agarrou na frigideira e bateu-lhe na cabeça. Ela caiu e não se levantou.” Leonor chorava. “Havia tanto sangue… O papá mandou-me para o quarto, mas ouvi-o ao telefone. Disse que ia levar-me para longe, onde ninguém nos encontrasse.”

O rádio ciciou. “Unidade 47, estamos na Rua das Acácias, 1247. Vítima feminina inconsciente, trauma craniano. Estão a reanimá-la.”

“Está viva?” perguntou a agente.

Estática. Depois: “Por pouco. Estão a fazer tudo.”

Leonor ouviu. “A mamã… está viva?” Olhou para mim, com esperança desesperada.

“Está viva, menina.” Eu também chorava. “Os médicos vão ajudá-la.”

O rádio crepitou outra vez. “Viatura do suspeito avistada na IC2, direção norte. A perseguição começou.”

Apanharam-no vinte minutos depois. Artur Pimentel, trinta e quatro anos, foi preso por tentativa de homicídio, perigo para uma criança e sequestro. A mulher, Sónia, sobreviveu, mas ficou duas semanas em coma. Fratura no crânio, hemorragia cerebral.

Mas sobreviveu.

Passei quatro horas na esquadra. Leonor não soltou a minha mão. Quando o Tribunal de Menores tentou levá-la, ela gritou.

“Por favor,” suplicou. “Não os deixe levar-me. Quero ficar consigo.”

A assistente social olhou para mim. “Tem família que possa ficar com ela temporariamente?”

“A minha mulher faleceu há três anos,” respondi. “Mas tenho uma filha. E estou reformado. E esta menina passou pelo inferno. Se ela quer ficar com alguém em quem confia, não devia contar?”

Foi preciso papelada, mas concederam-me custódia temporária. A minha filha, Joana, veio de longe para ajudar. É enfermeira. Sabia como lidar com o trauma. Como acalmar uma criança que viu o inimaginável.

Leonor ficou em minha casa seis semanas. Seis semanas de pesadelos. De perguntas se o pai voltaria. De, aos poucos, voltar a sentir-se segura.

Joana ficou a primeira semana. Ajudou-a a banhar-se. A comer. Acolheu-a nos terrores noturnos. E olhou para mim, com lágrimas,Joana pegou na minha mão e sussorrou, “Pai, ela vai ficar bem, porque finalmente encontrou um verdadeiro avô,” e naquele momento, senti que todas as minhas cicatrizes valeram a pena.

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