Uma menina pequena aproximou-se da minha mesa e implorou que ensinasse o seu pai a andar de mota.
“Ele chora todas as noites desde que o acidente lhe tirou as pernas,” sussurrou, os olhos cheios de lágrimas.
Depois, virou o seu mealheiro em cima da mesa do café — 4,73 euros em moedas de cêntimos espalharam-se pela superfície pegajosa.
“Mas ele costumava correr de mota antes de eu nascer, e pensei que talvez…” A voz sumiu-se, enquanto o pai dela esperava lá fora, na cadeira de rodas, demasiado orgulhoso para entrar e ver a filha a mendigar ajuda a um motociclista.
Pela janela, vi-o curvado na cadeira, a olhar para a minha Harley com uma saudade que partia o coração. Trinta e cinco anos, cabelo militar, próteses visíveis por baixo dos calções. A filha escapara-lhe enquanto ele se perdia na dor.
“Como te chamas, querida?” perguntei, empurrando as moedas de volta para ela.
“Inês. O meu pai é o Ricardo. Ele já não fala de motas. Diz que essa vida acabou.” Baixou ainda mais a voz. “Mas eu vi-o a olhar para revistas de motas na loja. Tocava nas fotografias como se fossem tesouros.”
Ela não fazia ideia de que eu tinha uma oficina de motas adaptadas, especializada em veteranos feridos.
Levantei-me, deixando vinte euros pelo café. “Guarda o teu dinheiro, Inês. Mas preciso que faças algo por mim.”
Os olhos brilharam. “O que for!”
“Vai dizer ao teu pai que o João Pires da Pires Motos Personalizadas quer falar com ele sobre os tempos de corrida. Diz-lhe que conheci o Rui Mendes.”
O Rui tinha sido o melhor amigo do Ricardo, morto na mesma explosão que lhe custou as pernas. Eu construíra a mota memorial para a viúva dele.
A Inês saiu a correr, com os cêntimos apertados na mão. Vi-a puxar a manga do Ricardo, apontando para mim. O rosto dele passou de irritação a choque, depois a algo próximo do medo.
Entrou devagar, a Inês a empurrar a cadeira, embora fosse elétrica. De perto, vi o olhar vazio de quem já desistiu — comum em tantos veteranos.
“Conhecias o Rui?” A voz falhou-lhe.
“Construí a mota memorial. A mulher dele, a Sofia, pediu-me.” Mostrei-lhe fotografias no telemóvel — uma Softail deslumbrante, insígnia da unidade, número de identificação, o nome gravado no cromo.
O Ricardo tocou no ecrã como a Inês descrevera. “Ele sempre prometeu ensinar-me a andar numa cruiser quando voltássemos. Eu preferia sport bikes, mas o Rui adorava Harleys.”
“A Inês diz que costumavas correr.”
O maxilar contraiu-se. “Isso foi antes.”
“Antes de perderes as pernas? Ou antes de perderes a esperança?”
As mãos cerraram-se nos braços da cadeira. “O que é que tu sabes disso?”
“Sei que acordas às 3 da manhã a pensar na estrada. Sei que ainda sonhas com as curvas, o motor debaixo de ti. Sei porque já construí motas para trinta e sete veteranos que acreditavam terem perdido a estrada.”
Mostrei-lhe vídeos — veteranos com próteses, paralisia, membros amputados — todos a andar em motas adaptadas. Rostos cheios de vida.
“Isto é treta de inspiração,” resmungou o Ricardo, mas os olhos não se afastaram do ecrã.
“Pai!” repreendeu a Inês. “Isso é feio!”
“Este é o Sargento Diogo Nunes,” continuei. “Triplo amputado. Conduz um trike personalizado. Fez a ‘Corrida pela Liberdade’ no ano passado.”
Outro vídeo. “A Cabo Ana Sousa. Paralisada da cintura para baixo. Terminou a Rota 66 na sua Spyder.”
“Para,” sussurrou o Ricardo. “Por favor.”
A Inês agarrou no telemóvel. “Pai, olha! Todos eles andam! Tu também podes!”
“Com que dinheiro, Inês?” retorquiu. “Achas que o exército paga motas personalizadas? A reforma cobre sonhos? Essa vida acabou.”
O lábio da Inês tremia. Empurrou os 4,73€ para a frente. “Então eu poupo mais. Deixo de almoçar. Eu—”
“Estiveste a saltar o almoço?” A voz dele ficou perigosamente silenciosa. Olhou para ela, reparando pela primeira vez na magreza, nas roupas gastas.
“Não preciso de almoçar,” insistiu. “Tu precisas mais da mota.”
O Ricardo desfez-se. Este fuzileiro que sobrevivera a uma mina, cirurgias, próteses, quebrou ali mesmo. Puxou-a para o colo. “Oh, minha querida. O que é que eu te fiz?”
Dei-lhes espaço antes de limpar a garganta. “Ricardo, ouve-me.”
Ele olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas.
“Cada mota que construí para um veterano foi de graça. Financiada por corridas, doações, velhos motociclistas que sabem o que é precisar do vento. A tua mota — o irmão do Rui — está à tua espera na minha oficina há seis meses.”
Ele ficou parado. “O quê?”
“A Sofia encomendou duas. Uma em memória do Rui, outra para o irmão que sobreviveu. Ela chama-te assim. Pagou tudo.”
“Eu já não consigo andar.”
“Não como antes,” concordei. “Mas consegues. Controlos manuais, estabilizadores, banco adaptado. Está pronta.”
A Inês saltou no colo dele. “Pai, por favor!”
“Já lá vão três anos,” murmurou o Ricardo. “Já nem me lembro—”
“Como não te lembras,” interrompi. “Cada mudança, cada curva, cada linha perfeita numa reta. Está na tua alma.”
Deixei o meu cartão em cima da mesa. “A oficina está aberta no sábado. Traz a Inês. Deixa-a ver-te tocar numa mota outra vez.”
Depois, para a Inês: “O teu pai precisa de aulas. Queres ajudá-lo? Pago vinte euros às minhas assistentes.”
Os olhos dela arregalaram-se. “Podia ajudar o pai e ganhar dinheiro?”
“Se ele tiver coragem.”
No sábado às 10 em ponto, o Ricardo entrou na oficina com a Inês a usar um capacete cheio de autocolantes brilhantes.
O local fervilhava de veteranos e motores. O Ricardo congelou, mas os outros acenaram — todos já tinham estado parados naquela porta.
A Inês correu para trás. “Pai, olha!”
O Ricardo seguiu-a e estacou.
Uma Harley Street Glide, preto mate, insígnia subtil dos fuzileiros. Controlos manuais, banco adaptado.
“É… minha?”
“Se quiseres. A Sofia já tratou de tudo.”
O Ricardo esticou a mão, trémulo, tocando no depósito. Algo despertou nele.
“É linda.”
“Pai, senta-te nela!” suplicou a Inês.
“Não posso—”
“Claro que podes,” disse o Sargento Diogo, aproximando-se. “A primeira vez é a mais difícil.”
Durante uma hora, os veteranos rodearam-no, ajudando-o a subir, explicando os controlos, partilhando histórias.
A Inês ficou ao meu lado, a chorar. “Ele está a sorrir. A sério.”
“Queres saber um segredo?” Disse-lhe. Ela acenou. “Os teus 4,73salvaram-no, não pelo valor, mas pelo amor que mostraste ao sacrificares-te por ele, e isso fez toda a diferença.
 
					