Uma senhora de 87 anos despediu a enfermeira que a acompanhava em casa e contratou um motociclista tatuado em seu lugar. A família ameaçou declará-la incapaz.
Sou sua vizinha e vi tudo acontecer da janela do meu apartamento, no prédio em frente. O que os filhos dela não sabiam, o que ninguém sabia além de mim, era o motivo daquela decisão.
Ela se chama Beatriz Nunes. Beatriz mora no apartamento 4B há quarenta e três anos. O marido faleceu em 2003. Os três filhos vivem em cidades diferentes e a visitam talvez duas vezes por ano.
Tem Parkinson avançado, osteoporose e uma solidão que dói nos ossos.
Mudei-me para cá há dois anos. Sou jornalista, trabalho em casa, e comecei a reparar em coisas. A agência de cuidadores enviava enfermeiras diferentes a cada semana.
Beatriz tentava conversar, criar laços, mas elas só faziam o trabalho e iam embora. Davam-lhe comida, banho, remédios. Depois sumiam.
Ela começou a deixar a porta entreaberta durante o dia. Só um pouco. O suficiente para ouvir alguém no corredor. Para não se sentir completamente sozinha. Eu acenava quando passava.
Às vezes parava para conversar. Ela me contava sobre o falecido marido, António, veterano da Guerra Colonial. Sobre os filhos, “ocupados demais”. Sobre como já viajou o mundo e agora mal conseguia chegar à caixa de correio sozinha.
O motociclista apareceu numa terça-feira de janeiro. Ouvi a porta de Beatriz abrir e espreitei pelo olho mágico. Lá estava ele. Quase dois metros de altura, coberto de tatuagens, barba até o peito, colete de couro com emblemas. Trazia sacolas de compras.
Minha primeira reação foi pensar que Beatriz estava sendo assaltada. Abri a porta. “Com licença, posso ajudar?” Ele se virou e sorriu. Um sorriso que transformou completamente seu rosto. “Só estou ajudando a dona Beatriz com as compras. Ela me chamou.”
A voz dela veio de dentro. “Ricardo, é você? Entre, entre. E traga minha vizinha curiosa também.”
Segui-o para dentro, desconfiada. Beatriz estava na poltrona, radiante. Radiante mesmo. Há meses não a via sorrir daquele jeito.
“Este é o Ricardo,” disse ela, orgulhosa. “É meu novo ajudante. Despedi a agência ontem.” Ricardo arrumou as compras, sabendo exatamente onde cada coisa ia.
“A dona Beatriz gosta dos biscoitos na segunda prateleira,” ele comentou. “E os saquinhos de chá no pote perto do fogão.”
Olhei para Beatriz. “Despediu a agência? A sua família sabe?” O sorriso dela esmaeceu um pouco. “Minha família não precisa saber tudo o que faço. Ainda não morri, por mais que se esforcem para planejar meu funeral.”
Ricardo terminou de guardar as compras e sentou-se no sofá. Aquele homem enorme, imponente, sentou-se com um cuidado tocante. “Dona Beatriz, está na hora do seu remédio do meio-dia. Quer que eu pegue?”
“Por favor, querido.” Ele foi à cozinha, voltou com o organizador de comprimidos e um copo d’água. Entregou-lhe com tanta delicadeza. Ela tomou os remédios e apertou sua mão. “Obrigada, meu amor.”
Precisava saber. “Como vocês se conheceram?” Os olhos de Beatriz brilharam. “Ele tentou roubar minha bolsa.” Meu queixo caiu. Ricardo riu. “Não foi bem assim, dona Beatriz.”
“Chegou perto,” ela respondeu. “Conte a ela.” Então ele me contou. Há três semanas, estava andando de moto pelo bairro quando viu Beatriz sentada no banco em frente ao prédio. Tinha conseguido descer sozinha, mas não subir. O elevador estava quebrado.
“Ela estava lá,” ele disse. “No frio, sem casaco. Parei e perguntei se precisava de ajuda. Ela disse que sim, mas não tinha dinheiro para me pagar.” Sorriu. “Então a carreguei pelos quatro andares.”
Beatriz interrompeu. “E quando chegamos ao meu apartamento, tentei dar-lhe minha bolsa. Pensei que era o que ele queria. O homem que me carregou. Assumi que fazia aquilo por dinheiro.” A voz dela ficou baixa. “É o que aprendi. Todos querem algo.”
Ricardo continuou. “Disse que não queria dinheiro. Ela perguntou por que eu a ajudei, então. Respondi: porque precisava de ajuda e eu estava ali.” Ele fez uma pausa. “Ela chorou. Disse que ninguém havia feito algo por ela sem esperar pagamento ou reconhecimento em dez anos.”
“Pedi que ficasse para o chá,” Beatriz disse. “E ele ficou. Por duas horas. Falamos de tudo. Do seu clube de motociclistas. Do trabalho como marceneiro. Da filha dele. Do meu António. Da minha vida. Conversa de verdade. Do tipo que não tinha desde que António morreu.”
“Quando fui embora, ela perguntou se eu voltaria,” Ricardo contou. “E voltei. No dia seguinte. E no outro. Depois de uma semana, ela despediu a enfermeira e me pediu para assumir.”
Fiquei atordoada. “Mas a agência, eles são profissionais. Treinados.” A expressão de Beatriz endureceu. “São estranhos que entram na minha casa, me tratam como uma tarefa na lista e vão embora. Ricardo me trata como uma pessoa.”
“Não faço isso por dinheiro,” ele acrescentou rapidamente. “A dona Beatriz insiste em me pagar, mas não é por isso que venho. Venho porque ela me lembra minha avó. Ela morreu sozinha num lar, enquanto eu estava no Afeganistão. Nunca pude me despedir.” A voz dele falhou. “Jurei que nunca deixaria outra avó ficar sozinha, se pudesse evitar.”
Nas semanas seguintes, vi a rotina deles se formar. Ricardo chegava todos os dias às 9h. Ajudava Beatriz a tomar banho, vestir-se. Preparava o pequeno-almoço. Conversavam por horas. Sobre a vida. Sobre perdas. Sobre tudo e nada.
Nos dias de clima bom, levava-a para passear. Literalmente a levava. Colocava-a na cadeira de rodas que comprou com seu próprio dinheiro e empurrava-a pelo bairro. Ao parque. À biblioteca. Ao café onde ela e António costumavam ir.
As pessoas olhavam. Aquele motociclista enorme empurrando uma senhora frágil. Alguns com medo. Outros com nojo. Beatriz adorava. “Deixa que olhem,” dizia. “Tenho o cuidador mais interessante da cidade.”
Ricardo começou a levá-la a eventos do clube. Não em passeios, obviamente, mas encontros. Churrascos. Eventos beneficentes. Beatriz virou a avó do grupo. Trinta motociclistas a chamando de dona Beatriz e competindo para levar os melhores doces.
Ela me disse uma vez, com lágrimas nos olhos: “Não me sentia tão viva há vinte anos.”
Foi então que os filhos descobriram. A filha, Catarina, me ligou. Exigiu saber o que estava acontecendo. Por que um “criminoso” passava tempo com a mãe? Estava a roubá-la? Aproveitando-se dela?
Contei a verdade. A mãe dela estava mais feliz do que em anos. Comia melhor. Movia-se mais. Ria. Vivia. Catarina não quis saber. “Ela não está a pensar direito. O Parkinson afeta o juízo. Vamos acabar com isso.”
A família apareceu duas semanas depois. Os três filhos. Invadiram o apartamento de Beatriz enquanto Ricardo estava láE no final, mesmo contra todas as ameaças e desconfianças, Ricardo continuou ao lado de Beatriz até seu último suspiro, provando que o amor verdadeiro não escolhe aparências, mas sim corações.