**Diário Pessoal**
Achei que fosse uma brincadeira quando o pequeno Miguel apareceu no nosso clube com o dinheiro do seu mealheiro, perguntando se éramos “o tipo de motociclistas que protegem as pessoas”, como tinha visto na televisão.
O lábio estava cortado, o olho roxo, e ele tremia tanto que mal conseguia contar os euros em cima da nossa mesa de cartas.
Mas o que nos contou em seguida sobre o motivo de precisar de proteção fez com que todos nós – homens adultos que sobreviveram a guerras, prisões e lutas de rua – sentíssemos vontade de chorar e de explodir ao mesmo tempo.
“Eles magoaram a Sara,” disse, com a voz quase um sussurro. “Ela tem síndrome de Down e empurraram a cadeira de rodas dela escada abaixo. Contei à professora, mas ela disse que os rapazes são assim mesmo. Depois, disseram que iam bater-me muito amanhã depois da escola, por ser um dedo-duro.”
O Zé Grande, o presidente do nosso clube, olhou para os sete euros em cima da mesa. A nossa taxa diária por segurança era de quinhentos euros por homem. Aquele miúdo não tinha dinheiro nem para nos contratar por dez minutos.
“Miúdo,” o Zé disse com suavidade. “Nós não podemos—”
“Por favor,” interrompeu o Miguel, com lágrimas frescas misturando-se ao sangue seco no rosto. “A minha mãe trabalha em dois empregos. O meu pai foi-se embora. Não tenho mais ninguém. E a Sara, ela é minha amiga. Ela não pode andar, magoaram-na e ninguém quer saber… tenho medo, mas alguém tem de a proteger.”
O clube ficou em silêncio. Dezassete motociclistas durões, a olhar para um miúdo de nove anos que tinha gasto todas as suas poupanças para contratar proteção para si e para a amiga.
“Onde está a Sara agora?” perguntou o Zé.
“No hospital. A mãe está com ela. Partiu o braço quando empurraram a cadeira. A escola chamou-lhe um acidente.” Os punhos do Miguel apertaram-se. “Mas não foi nenhum acidente. O Rui Gonçalves riu-se enquanto ela chorava.”
O Vermelho, o nosso responsável pela segurança, falou. “Quantos anos tem esse Rui?”
“Doze. Mas é grande. Mesmo grande. E tem seis amigos que fazem tudo o que ele manda.”
Um valentão de doze anos que aterrorizava uma rapariga com deficiência e o miúdo de nove que tentou defendê-la. E a escola não fez nada.
O Zé pegou nos sete euros. “Isto é mais do que suficiente,” disse com seriedade. “Aceitamos o trabalho.”
Os olhos do Miguel arregalaram-se. “A sério?”
“A sério. Estaremos na tua escola amanhã. A que horas?”
“Três da tarde. É quando a escola acaba. Disseram que me iam apanhar no estacionamento.”
“Não vão, não,” prometeu o Zé.
Depois de o Miguel sair, segurando o recibo que o Zé lhe tinha escrito – “Serviços de Segurança Pagos na Totalidade” –, o clube reuniu-se.
“Vamos mesmo fazer isto?” perguntou o Vermelho.
“Claro que vamos,” o Zé afirmou. “O miúdo gastou tudo o que tinha para proteger a amiga. Isso mostra mais honra do que muitos homens mostram numa vida inteira.”
No dia seguinte, às duas e meia, dezassete motociclistas apareceram na Escola Primária do Tejo. Estacionámos as nossas motas em fila em frente à entrada principal e esperámos. O ronco dos motores trouxe professores e alunos às janelas.
Às três em ponto, o toque da campainha soou e as crianças saíram em massa. Mantivemo-nos de pé, em silêncio, vestidos com os nossos coletes de couro, braços cruzados. Vimos logo o Miguel – pequeno para a idade, a caminhar perto de uma mulher que empurrava uma cadeira de rodas. Sara, presumimos, com o braço num gesso novo.
Atrás deles, vinham seis rapazes mais velhos, liderados por um miúdo que era facilmente o dobro do tamanho do Miguel. O Rui Gonçalves e o seu grupo. Pararam a seco quando nos viram.
“Miguel,” chamou o Zé. “És tu?”
O rosto do Miguel iluminou-se de alívio e incredulidade. “Vocês vieram!”
“Dissemos que viríamos. Somos homens de palavra.” O Zé olhou para o Rui e os amigos. “São estes os rapazes de que falaste?”
“Sim, senhor.”
O Zé avançou para o grupo, e dezasseis motociclistas seguiram-no. Os amigos do Rui começaram logo a recuar, mas ele manteve-se no lugar, tentando parecer durão.
“Tu és o Rui?” perguntou o Zé.
O miúdo respondeu com um aceno, a coragem a rachar-lhe um pouco.
“Ouvi dizer que gostas de empurrar raparigas em cadeiras de rodas pelas escadas abaixo.”
“Foi um acidente,” disse o Rui rapidamente.
“Engraçado. As testemunhas dizem o contrário. Dizem que te riste enquanto ela chorava.”
O rosto do Rui ficou vermelho. “Quem são vocês? Não podem estar aqui.”
“Somos a equipa de segurança do Miguel. Ele contratou-nos.” O Zé levantou o recibo. “Pago na totalidade. Estamos aqui para garantir que nada aconteça a ele ou à amiga Sara.”
Uma professora saiu a correr. “Desculpem, têm de sair. Isto é propriedade da escola.”
O Zé virou-se para ela com calma. “É a professora a quem o Miguel reportou o bullying?”
Ela empalideceu. “Isso… foi tratado internamente.”
“Deixando que continuasse? Chamando ataque deliberado de acidente?” A voz do Zé não se alterou, mas a raiva era clara. “Menina, uma criança foi hospitalizada. Outra tentou fazer o que era certo e foi ameaçada por isso. Isso não é tratar. Isso é ignorar.”
“Não gosto do seu tom—”
“E eu não gosto de crianças serem aterrorizadas enquanto os adultos fecham os olhos,” cortou o Zé. “Portanto, eis o que vai acontecer. Todos os dias às três da tarde, estaremos aqui. Vamos acompanhar o Miguel e a Sara em segurança para casa. E se alguém – alguém – lhes tocar, terá de responder perante nós.”
“Não podem ameaçar crianças!”
“Não estamos a amear. Estamos a proteger. Há diferença. Algo que esta escola claramente não percebe.”
Nessa altura, já uma multidão se tinha juntado. Pais, alunos, mais professores. A mãe do Rui atravessou a multidão.
“O que se passa? Rui, estes homens estão a importunar-te?”
“O teu filho mandou uma rapariga com deficiência para o hospital,” disse o Vermelho, sem rodeios. “Agora está a ameaçar o miúdo que denunciou.”
“O Rui nunca—” ela começou, mas o Zé mostrou-lhe o telemóvel.
“Engraçado como os miúdos hoje em dia filmam tudo.” Virou o ecrã para mostrar uma gravação – o Rui e os amigos deliberadamente a virar a cadeira da Sara, ela a gritar, eles a rirem. “Isto foi-nos enviado por cinco alunos diferentes. Todos com medo de mostrar aos professores porque nunca acontece nada.”
A mãe do Rui ficou pálida. “Rui, isto é verdade?”
O silêncio do Rui foi resposta suficiente.
“Eis o acordo,” o Zé disse, dirigindo-se a todos. “O Miguel contratou-nos. Trabalhamos para ele agora. Todos os dias, estaremos aqui. Não para causar problemas. Apenas para garantir que estes dois miúdos chegam a casa em segurança. No dia em que o bullying”Anos depois, ainda montamos guarda não só para o Miguel e a Sara, mas para todas as crianças que, como eles, precisam de alguém que diga ‘basta’ ao medo.”