Ele se disfarçou e ficou chocado ao ver a empregada proteger seu filho; sua reação mudou tudo.

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*Diário Pessoal*

O céu de Lisboa naquela manhã parecia pintado com uma melancolia azul-pálida, como se a cidade soubesse que algo na vida de Ricardo Mendonça se partira para sempre.

Fazia apenas três meses que o multimilionário, fundador de uma das empresas tecnológicas mais influentes do país, se mudara para a sua nova mansão em Cascais com a recém-esposa, Beatriz Almeida, após um divórcio longo, público e doloroso. A imprenza cobriu tudo: as disputas judiciais, as fotos roubadas, as teorias sobre infidelidades. Quando finalmente se anunciou que Ricardo tinha uma nova mulher, a narrativa mudou: *“O magnata volta a encontrar o amor”*.

Por fora, Beatriz era perfeita.

Sorriso impecável, roupas elegantes sem ostentação vulgar, presença cativante em eventos beneficentes, declarações doces sempre que uma câmara se aproximava dela e das crianças: Leonor, de seis anos, sempre de tranças impecáveis, e Martim, de dois, agarrado ao seu ursinho de pelúcia.

*“São a minha prioridade”*, dissera Beatriz numa entrevista à porta da mansão, abraçando Leonor enquanto Martim escondia o rosto no seu pescoço. *“Amo-os como se fossem meus.”*

A cidade aplaudiu.

Ricardo quis acreditar. Precisava acreditar.

Depois de um casamento que se tornara numa guerra fria, a ideia de uma mulher que trouxesse estabilidade à sua vida e calor ao lar era um bálsamo. Beatriz aparecera num congresso internacional sobre inovação e responsabilidade social, brilhante, articulada, com opiniões firmes sobre educação e família. Ele caiu sem se dar conta.

Mas as fachadas não duram quando a porta se fecha.

Foi Leonor quem deixou cair a primeira fissura.

*“Pai, vais sair outra vez?”*, perguntou uma noite, com a voz baixinha, agarrando a ponta do seu casaco.

Ricardo, já com a mala na mão e o motorista à espera para o levar ao aeroporto, ajoelhou-se à sua frente.

*“São só dois dias, querida. Tenho reuniões no Porto. A Beatriz fica com vocês. Vão ficar bem.”*

Leonor hesitou. Os seus grandes olhos castanhos pareciam procurar algo no rosto do pai. Depois, como se tivesse decidido algo, anuiu, mas não sorriu. Martim, ao colo de Beatriz, chupava no dedo, calado.

*“Não sejas dramática, Leonor”*, interveio Beatriz com tom suave mas afiado. *“O teu pai trabalha muito por todos nós. Vai acabar os trabalhos de casa.”*

Ricardo ignorou o fio na sua voz. Atribuiu-o ao stress. Despediu-se, beijou os filhos, abraçou Beatriz e saiu.

Os dois dias tornaram-se quatro por atrasos, depois seis. Quando voltou, as crianças estavam estranhamente caladas.

Leonor já não correu para os seus braços como antes. Martim já não esticou os bracinhos a pedir *“colo”*.

Apenas o olharam, sérios.

*“Estão bem?”*, perguntou ele, tentando soar casual.

*“Claro”*, respondeu Beatriz com um sorriso perfeito. *“Estão um pouco sensíveis, mas sabes como é, estão a adaptar-se.”*

Ricardo quis acreditar outra vez.

Até começar a reparar nos detalhes.

Leonor estremecia quando alguém levantava a voz na televisão. Martim escondia comida nos guardanapos. Uma noite, Ricardo encontrou o filho sentado no chão, com o prato quase intacto.

*“Campeão, não tens fome?”*

Martim abanou a cabeça sem o olhar.

*“A Beatriz diz que já comi”*, sussurrou.

Ricardo franziu a testa.

Foi à cozinha. Beatriz organizava os tupperwares como peças de um puzzle perfeito.

*“Martim não quer jantar?”*

*“Já comeu”*, respondeu ela sem se virar. *“Está a aprender a não desperdiçar. Os teus filhos estão mal-educados, Ricardo. A tua ex mulher mimou-os demasiado.”*

A frase cortou-o. Cerrou a mandíbula, mas não respondeu. Em vez disso, ficou acordado até tarde, a rever e-mails, mas com a mente presa no olhar apagado dos filhos.

Nos dias seguintes, a sensação cresceu.

Leonor andava com cuidado, como se o chão a pudesse trair. Beatriz corrigia cada gesto.

*“Não encolhas os ombros.”*
*“Não fales tão alto.”*
*“Não mexas nisso, vais partir.”*
*“Não chores por coisas parvas, Leonor, pareces um bebé.”*

Tudo dito com sorriso se Ricardo estivesse por perto. Com veneno quando ele se virava.

Havia outra presença na casa que Ricardo começou a notar mais: Sofia.

A empregada doméstica fora contratada pouco após a mudança. Teria uns vinte e cinco anos, cabelo escuro apanhado num rabo-de-cavalo simples, olhar caloroso, mãos ágeis. Era eficiente, invisível quando precisava, mas os seus olhos suavizavam-se quando olhava para as crianças.

Mais de uma vez, Ricardo viu-a oferecer discretamente mais puré a Martim quando pensava que ninguém via. A Leonor, um bolinho escondido num guardanapo.

*“Come devagar, meu amor”*, sussurrava. *“Não há problema.”*

Beatriz, quando a apanhava, torcia a boca.

*“Não queremos crianças obesas, Sofia”*, dizia com doçura gelada. *“Aqui seguimos dietas equilibradas. Faz apenas o que te peço.”*

Sofia baixava a cabeça, mas algo se endurecia no seu rosto quando Beatriz se afastava.

Ricardo via.

Ricardo começava, pela primeira vez em muito tempo, a duvidar do seu próprio juízo.

Uma noite, ouviu um soluço abafado. Eram quase onze horas. Beatriz dormia ao seu lado, imóvel, como uma estátua perfeita.

Ricardo levantou-se sem acender a luz. Seguiu o som até ao corredor. Parou à porta de Leonor.

Abriu devagar.

Leonor estava sentada na cama, abraçando os joelhos, com o rosto escondido.

*“Leonor”*, sussurrou ele. *“Menina, o que se passa?”*

Ela ergueu o olhar, os olhos vermelhos. Viu-o. Hesitou. Olhou para a porta. Para o corredor. Como se temesse que alguém mais estivesse a ouvir.

*“Nada”*, sussurrou. *“Estou bem.”*

*“Dói-te alguma coisa? Tiveste um pesadelo?”*

Ela apertou os lábios com força.

*“A Beatriz… diz que não devo incomodar”*, disse por fim, quase inaudível. *“Que… que só as crianças más choram.”*

Ricardo sentiu um frio subir-lhe pelas costas.

*“Leonor, nunca és má por chorar”*, disse, com a voz a falhar-lhe um pouco. *“Nunca.”*

Ela olhou para ele como se não soubesse se acreditava.

E isso partiu-o.

Naquela noite, enquanto Beatriz dormia placidamente, Ricardo ficou sentado no escritório, com as luzes apagadas, a olhar para o jardim através das janelas altas. Na escuridão, o reflexo do seu próprio rosto cansado olhava para ele.

Era um homem que construíra edifícios, comprara empresas, derrubara concorrentes.

Mas não sabia o que se passava na sua própria casa.

Ou não queria ver.

Até ali.

A ideia foi tão absurda que no início lhe deu um riso amargo.

DepoisE naquela noite, enquanto observava os filhos a dormirem em paz, finalmente livre das sombras, Ricardo percebeu que a verdadeira fortuna nunca estivera nos seus milhões, mas sim nos pequenos abraços roubados ao medo.

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