A praça em frente ao Hospital de Santa Maria pulsava com a vida cotidiana — autocarros a parar no passeio, pombas a levantar voo, crianças a arrastar trotinetes sobre o calcário aquecido pelo sol. Para Inês Matos, os sons fundiam-se num murmúrio baixo, abafado pelos suspiros dos três bebés aconchegados no carrinho. Tinha acabado as consultas de rotina. Aprendera a mover-se pela cidade com uma segurança que não tinha anos atrás, uma firmeza conquistada em quartos silenciosos às três da manhã, no calor dos biberões, nas cantigas de embalar e nas pequenas teimosias da sobrevivência.
“Inês?”
O nome ecoou como um vidro a partir-se. As mãos dela apertaram o cabo do carrinho. Não ouvira aquela voz há anos, mas o corpo reconheceu-a de imediato. Virou-se.
Do outro lado da praça, Duarte Guimarães estava parado junto a um carro preto, o telemóvel caído no chão, a postura congelada, como se um raio lhe tivesse caído aos pés. Parecia mais velho, não pelos anos, mas pela ausência da leveza de antes. A boca abriu e fechou antes que qualquer som saísse.
“Inês”, disse de novo, mais suave, quase como se a palavra pudesse quebrar. “És tu.”
“Sou”, respondeu ela. A voz era calma, mas com um fio de aço por dentro. Ele seguiu o seu olhar até ao carrinho. Três pequenas formas moviam-se sob os cobertores de lã. O sangue pareceu desaparecer-lhe do rosto.
“Tu… tens filhos.”
“Tenho.”
O silêncio instalou-se entre eles, denso como uma parede. Nalgum lugar, uma porta de autocarro assobiou; noutro, um violinista extraía uma melodia brilhante de um canto da rua. Dentro do círculo invisível que os isolava, o tempo parecia ter parado.
Ele deu um passo em frente. “Podemos… podemos conversar? Por favor.”
Ela observou-o por longos segundos, como um juiz que já conhece o veredito escrito na memória e na dor. Depois, acenou com a cabeça na direção de um banco à sombra. Ele seguiu, mantendo distância do carrinho, como se a proximidade precisasse de permissão.
“Saíste quando as portas da igreja se abriram”, disse ela, antes que ele pudesse falar, os olhos fixos num ponto além do seu ombro. “Lembras-te disso? O órgão começou. Todos se levantaram. A minha mãe apertou-me a mão. E tu… não estavas. Ficaram à espera que aparecesses, e não o fizeste. Nem sequer chegaste ao altar, Duarte. Deixaste-me ali, de pé, com um vestido que nunca usei no corredor.”
As palavras caíram como pedras num lago imóvel. Ele não se defendeu. Engoliu em seco. “Lembro-me”, disse. “Tenho-me lembrado todos os dias desde então.”
“Bom.” O tom dela era plano, mas a quietude tinha dentes. “Então não preciso explicar o sabor da humilhação. Da pena. Dos murmúrios.”
A garganta dele moveu-se. “Lamento.”
Inês soltou um riso sem humor. “O mundo está cheio de ‘lamentos’. Tenta outra coisa.”
Ele tentou. “Tomei a pior decisão da minha vida. O meu pai morreu, e senti que me afogava. Ele tinha uma frase que martelava em mim: ‘O casamento é carregar a vida de outro como se fosse tua.’ Olhei para o homem no espelho, e tudo o que vi foi um pavio a queimar. Não forte. Não firme. Ouvi o órgão, vi as portas a abrirem-se, e, em vez de me virar para ti, vi tudo o que temia vir a ser. Então fugi. Como um covarde. Saí por uma porta lateral e continuei a caminhar. Disse a mim mesmo que estava a poupar-te o pior de mim. Era uma maneira mais bonita de nomear o que fiz. A verdade é que tive medo de falhar contigo em público, então falhei logo no início.”
Inês não desviou o olhar. “E nas semanas seguintes?”, perguntou baixinho. “Quando cancelei as flores, devolvi o bolo, dobrei o vestido e o guardei numa caixa que não conseguia abrir? Quando descobri, três dias depois, que estava grávida dos nossos filhos?”
Ele estremeceu. A vergonha cruzou-lhe o rosto como uma sombra. “Não sabia deles.”
“Não. Não sabias.” Ela soltou um suspiro longo, e a raiva que o acompanhava era agora uma velha companheira, domada, mantida à rédea curta. “Aprendi a segurar três bebés e um emprego. Aprendi a construir uma vida que não desabasse quando alguém falhava. Parei de esperar por explicações e comecei a ferver biberões.”
Um som suave veio do carrinho. Inês inclinou-se, com o gesto treinado de quem já o fizera mil vezes, para ajustar o cobertor num pezinho agitado. Quando se endireitou, os ombros dela permaneciam firmes. “O que queres, Duarte? A versão curta.”
“Quero conhecê-los”, disse ele. “Não como uma visita ocasional e não para parecer decente. Não sei que título mereço, mas quero fazer o trabalho que o conquiste. Quero estar onde devia ter estado, em silêncio, sem discursos.”
Ele sempre fora bom com palavras. Ela obrigou-o a provar que podia ser melhor sem elas. “Se queres começar, começa pequeno”, disse. “Sem promessas. Sem reivindicações. Aparece. Não metas os pés onde não és convidado. Não faltes ao que dizes que vais cumprir.”
“Não falharei”, respondeu. “Não peço confiança que não construí.”
“Bom”, disse ela. “Porque eles não precisam de um gesto grandioso. Precisam de alguém que limpe um nariz, faça a sua vez, arrume um brinquedo, alivie o peso.” Algo nos seus olhos suavizou um pouco. “Chamam-se Leonor, Mateus e Bárbara.”
Ele repetiu os nomes como uma oração. “Leonor. Mateus. Bárbara.”
Na terça-feira seguinte, ele estava no jardim dez minutos antes, as mãos vazias exceto por um saquinho de maçãs fatiadas e uma garrafa de chá fraco, o tipo que imaginava que crianças aceitariam só por vir com uma história. Manteve distância até Inês o chamar. Quando a trava do carrinho emperrou, ele lutou para a abrir e sorriu perante a pequena vitória, como se importasse, porque importava. Aprendia rápido. Pedia duas vezes antes de pegar em alguém. Não anunciava as suas virtudes; contava baloiços.
Às quintas, ia ao apartamento estreito por cima da Pastelaria Costa e sentava-se no tapete com blocos e livros de feltro. A DonaE quando o inverno chegou, encontraram-se todos sentados à mesa da cozinha, com as mãos ocupadas e os corações leves, porque haviam aprendido que o amor, como o pão caseiro, cresce melhor quando se amassa com paciência e se assa no calor do tempo, lentamente.