—«Sai da frente, aleijada!» —gritou um valentão alto, dando um pontapé numa rapariga com deficiência, fazendo-a cair no abrigo de autocarro. Noventa e nove ciclistas que passavam viram tudo aquilo e…
Era uma manhã fria de sábado no centro de Lisboa. O abrigo de autocarro na esquina da Avenida da Liberdade com a Rua Augusta estava cheio de pessoas a caminho do trabalho, estudantes com mochilas e um idoso a beber um café num copo de papel.
No meio deles estava Beatriz Costa, uma estudante universitaria de 19 anos com paralisia cerebral. Segurava-se com cuidado nas muletas, com a mochila aos pés, à espera do autocarro 728, que a levaria à universidade.
Um rapaz alto —Tiago Mendes, de 22 anos— aproximou-se com ar arrogante, de auscultadores nos ouvidos e uma meia-de-leite na mão. Quando viu Beatriz, revirou os olhos. —«Despacha-te» —disse, secamente.
Beatriz olhou para cima. —«Desculpa, não consigo andar depressa. A minha órtese…»
Tiago sorriu com desdém. —«Eu disse para te mexeres, aleijada!»
Antes que alguém reagisse, deu-lhe um pontapé. Beatriz caiu de lado no chão, e o som das muletas a bater no pavimento ecoou na rua.
A multidão ficou em choque. Uma senhora gritou: —«Ó rapaz, mas que raio?!» —mas ninguém se aproximou.
Tiago bufou. —«Ela é que não devia estar a bloquear o passeio.»
Beatriz tentou levantar-se, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Tinha as palmas das mãos esfoladas e a voz trémula. —«Porque fizeste isto?»
Tiago encolheu os ombros e afastou-se. —«Não é problema meu.»
Mas, nesse momento, ouviu-se ao longe o som de rodas a girar e vozes a gritar.
Era o Passeio da Liberdade de Lisboa, um grupo local de ciclistas —quase cem, com camisolas azuis combinando— a caminho do centro para o seu evento solidário mensal.
Os primeiros ciclistas abrandaram ao ver Beatriz no chão. Um deles, João Silva, travou a fundo. —«O que aconteceu?»
Um transeunte apontou para Tiago, que continuava a sorrir, alguns metros adiante. —«Foi aquele gajo que a empurrou.»
A expressão de João mudou num instante. Virou-se para o grupo e gritou: —«Parem! Todos, parem!»
Em segundos, noventa e nove ciclistas pararam, formando um semicírculo à volta do local. O ar ficou pesado, e todos os olhos se viraram para Tiago.
Ele tentou rir. —«E então, vão-me multar ou quê?»
João avançou. —«Não» —disse com calma—, «vamos é ensinar-te o que é respeito.»
A rua ficou em silêncio, só se ouvindo o clique das mudanças das bicicletas e o som suave das rodas a travar. Dezenas de ciclistas desmontaram, formando uma barreira entre Beatriz e o agressor.
João ajoelhou-se ao lado dela. —«Estás bem?»
Ela anuiu, enxugando as lágrimas. —«Ele só… empurrou-me. Eu não fiz nada.»
Tiago revirou os olhos. —«Estão a exagerar. Não foi por mal.»
Uma ciclista mais velha, Maria Fernandes, de cabelo grisalho, ergueu-se. —«Dás um pontapé numa rapariga com deficiência e achas que não tem importância?»
Tiago bufou. —«Ela estava no meio!»
João apertou o maxilar. —«Sabes que mais? Tens sorte de não sermos a polícia. Mas somos testemunhas.» —Virou-se para Beatriz—. «Queres chamar a polícia?»
Ela hesitou. —«Eu… não quero problemas.»
Mas João abanou a cabeça. —«Mereces justiça, não silêncio.»
Então, aconteceu algo inesperado: um dos ciclistas ligou a sua GoPro e, em segundos, quase todos os outros fizeram o mesmo. Noventa e nove ciclistas, com telemóveis e câmaras, apontaram para o agressor.
—«Ó pá, para de me filmar!» —gritou Tiago.
—«Não te importaste quando a chutaste» —retorquiu Maria.
João cruzou os braços. —«Dou-te uma escolha: ou te desculpas publicamente, ou entregamos as imagens à polícia. Tu decides.»
As pessoas no abrigo começaram a aplaudir em surdina. A arrogância de Tiago desmoronou-se sob o peso de tantos olhares.
Finalmente, os ombros dele caíram. Murmurou: —«Desculpa, tá bem?»
A voz de João foi firme. —«Mais alto.»
Tiago suspirou. —«Desculpa por te ter empurrado» —disse a Beatriz.
Ela olhou para ele, com voz suave mas firme —«Perdoo-te. Mas nunca mais faças isso a ninguém.»
Os ciclistas aplaudiram. Um ajudou Beatriz a levantar-se, outro ajustou-lhe as muletas. João deu-lhe uma garrafa de água.
Quando a polícia chegou —alertada por um transeunte—, viu o vídeo e levou Tiago para interrogá-lo.
Quando o autocarro finalmente chegou, João perguntou: —«Precisas que te acompanhemos? Podemos levar-te para teres a certeza de que chegas a casa bem.»
Beatriz sorriu, ainda com lágrimas nos olhos. —«Obrigada. Já fizeram o suficiente.»
E assim, a rapariga que caiu por causa da crueldade foi levantada —pela bondade de estranhos de bicicleta.
No dia seguinte, o vídeo tornou-se viral. O clip, intitulado «99 ciclistas defendem rapariga com deficiência», teve mais de 12 milhões de visualizações no TikTok e no YouTube.
Os comentários não tardaram:
«Voltei a acreditar na humanidade.»
«A coragem dela e a união dos ciclistas: é disto que o mundo precisa.»
«Espero que aquele gajo aprenda a lição.»
Os jornais locais entrevistaram Beatriz e João. —«Nunca pensei que alguém me ajudasse» —disse Beatriz, baixinho. —«Estou habituada a que as pessoas ignorem. Mas naquele dia, desconhecidos tornaram-se heróis.»
João acrescentou: —«Não queríamos ser heróis. Só fizemos o que qualquer um devia fazer.»
O presidente da câmara até convidou o grupo para uma pequena cerimónia, homenageando o seu ato de solidariedade. Beatriz apareceu com muletas novas, azuis, a combinar com as camisolas dos ciclistas.
Quanto a Tiago, as autoridades confirmaram que enfrentava acusações de agressão e assédio. Mais tarde, pediu desculpas publicamente e começou a trabalhar como voluntário num programa de sensibilização para a deficiência, como parte da sua liberdade condicional.
Meses depois, Beatriz juntou-se a um grupo de reabilitação para apoiar outras pessoas com deficiência. No seu primeiro evento, sorriu ao ver os coletes azuis —um símbolo familiar— lá presentes, outra vez do seu lado.
—«Graças àquele dia» —disse—, «aprendi que a bondade é mais forte que a crueldade. Só é preciso acreditar que alguém a vai ouvir.»
João sorriu. —«Nós estamos sempre a ouvir.»
O grupo ofereceu-lhe uma bicicleta adaptada às suas necessidades. A multidão ovacionou-a quando deu a primeira volta no parque, entre risos.
Da dor ao empoderamento: a sua históriaE, enquanto as rodas daquela bicicleta especial giravam sob o sol de Lisboa, Beatriz percebeu que a vida, tal como o caminho à sua frente, agora era só sua para percorrer.