O candelabro de cristal lançava sombras dançantes sobre o chão de mármore do restaurante O Peregrino. Enquanto Joana Vieira ajustava o seu uniforme preto pela terceira vez naquela noite, as suas mãos tremiam ligeiramente—não por nervosismo em servir a elite de Lisboa, mas pelo peso familiar de esconder quem realmente era. Aos 24 anos, aperfeiçoara a arte da invisibilidade, movendo-se pelo restaurante como um fantasma com um sorriso.
Lá fora, a Avenida da Liberdade pulsava com táxis amarelos e o ar fresco da noite; dentro, o maitre vestido de smoking trabalhava no mapa de mesas como só os veteranos de Lisboa sabem fazer. As fichas do guarda-volumes tilintavam, o primeiro serviço começava às 19h30 em ponto, e algures além das portas da cozinha, um rádio sussurrava notícias sobre o Benfica. O vapor subia das grelhas da calçada, uma sirene dos bombeiros ecoava pela Rua Augusta, e o som do passe sem contacto do Metropolitano ainda zumbia no ouvido de Joana, vindo da linha azul.
“Mesas 5 e 7 precisam de mais vinho,” chamou Catarina, a chefe de mesa, sem sequer olhar para cima do seu bloco de pedidos. “E tenta não derrubar nada no Sr. Albuquerque hoje. Ele já reclamou duas vezes da temperatura.”
Joana acenou, pegando na garrafa de Vinho do Porto que custava mais do que ela ganhava num mês. Eduardo Albuquerque. Até o nome dele soava a dinheiro—dinheiro antigo, dinheiro novo, o tipo de dinheiro que fazia as pessoas baixarem as cabeças e desviarem os olhos. Servia a sua mesa há três meses, e ele nunca a vira como mais do que um móvel.
A sala de jantar murmurava com conversas discretas de pessoas que nunca se preocuparam com a renda, com contas médicas, ou se sobraria dinheiro para as compras depois de pagar os materiais escolares dos filhos. Joana conhecia aquele mundo intimamente. Vivera nele uma vez, numa vida que parecia ter acontecido a outra pessoa.
“Com licença, menina.” A voz era afiada, dominante, com um traço de impaciência que fez Joana endireitar a postura automaticamente. Virou-se e viu Eduardo Albuquerque mais perto do que esperava, os olhos cinzentos fixos nela com uma intensidade que lhe fez o estômago revirar—lugar errado, hora errada. Era alto; ela teve de levantar a cabeça para o encarar. Cabelo escuro, cortado por alguém que cobrava mais por hora do que Joana ganhava numa semana. O fato era impecável, provavelmente italiano, certamente caro.
“O seu vinho, senhor,” disse Joana suavemente, erguendo a garrafa.
“Não para mim.” Eduardo apontou para a mulher elegante sentada à mesa atrás dele. “Minha mãe. Ela tem tentado chamar a sua atenção há dez minutos.”
O olhar de Joana dirigiu-se à mulher e o seu coração apertou. Dona Albuquerque devia ter uns sessenta anos, cabelo prateado preso num discreto coque e olhos bondosos que pareciam guardar um universo de histórias. Estava a fazer gestos subtis com as mãos, o rosto iluminado com um sorriso esperançoso.
Sem pensar, Joana pousou a garrafa na mesa mais próxima e aproximou-se de Dona Albuquerque. *Boa noite,* gesticulou, as mãos movendo-se com a graça de quem estava habituada. *Como posso ajudá-la?*
O rosto da mulher transformou-se de alegria, as mãos dançando enquanto respondia. *Oh, que maravilha. Queria elogiar o chef pelo bacalhau. Lembra-me de um prato que comi em Paris há anos.*
*Vou certificar-me de que ele recebe as suas palavras*, respondeu Joana, sorrindo genuinamente pela primeira vez naquela noite. *Quer que eu pergunte sobre a receita? Acredito que ele usa uma mistura especial de ervas.*
Atrás dela, percebeu vagamente que toda a casa ficara mais silenciosa, mas estava focada na resposta animada da mulher sobre as suas viagens pela França e como poucos se davam ao trabalho de realmente comunicar com ela.
*Você é muito gentil,* gesticulou Dona Albuquerque. *A maioria só sorri e acena quando percebe que sou surda. Gesticula maravilhosamente. Onde aprendeu?*
*Estudei linguística na universidade,* respondeu Joana automaticamente—e depois congelou, percebendo o que acabara de revelar.
“Linguística?” A voz de Eduardo cortou o momento como uma faca. Estava a olhar para ela com uma expressão que não conseguia decifrar. “Em que universidade?”
Joana sentiu o pânico familiar a subir-lhe ao peito. Fora tão cuidadosa durante tanto tempo, e agora um momento de conexão humana rachara a sua fachada. “Eu… foram apenas algumas aulas, senhor. Nada importante.”
“Nada importante?” Eduardo aproximou-se, a voz baixando para um tom que parecia mais perigoso do que quando estivera a exigir. “Fala linguagem gestual fluentemente. Mencionou linguística, e aposto que não é a única língua que conhece. O que mais está a esconder?”
A pergunta pairou no ar entre eles como um desafio. Joana sentia os olhos dos outros clientes sobre eles, via Catarina à espreita nervosamente por perto, provavelmente a calcular o problema que estava a causar.
“Tenho de voltar ao trabalho,” disse Joana baixinho, estendendo a mão para a garrafa de vinho.
“Espere.” Eduardo agarrou-lhe o pulso—não com força, mas com firmeza suficiente para a impedir. O contacto enviou uma faísca inesperada pelo seu corpo, e viu algo cintilar nos olhos dele que sugeria que ele também o sentira. “Peço desculpa. Foi desnecessariamente rude.”
Joana olhou para a mão dele no seu pulso, reparando no relógio caro, nas unhas bem cuidadas, na ausência de calos ou cicatrizes que marcavam uma vida de trabalho físico. Quando ergueu o olhar, a expressão dele mudara para algo quase vulnerável.
“A sua mãe é encantadora,” disse Joana suavemente. “Estava a contar-me sobre a sua viagem a Paris.”
“Ela gosta de si.” Eduardo soltou-lhe o pulso mas não recuou. “Não gosta de muita gente. Talvez porque a maioria não se dá ao trabalho de realmente ouvir.” As palavras escaparam-se antes que Joana pudesse pará-las, carregando mais ironia do que pretendia.
As sobrancelhas de Eduardo levantaram-se ligeiramente, e por um momento Joana pensou ver o esboço de um sorriso. “E acha que eu não ouço?”
“Acho que está habituado a que as pessoas digam o que quer ouvir.”
Desta vez, o sorriso dele foi real, transformando-lhe o rosto todo. “Sabe, provavelmente tem razão. Mas não respondeu à minha pergunta sobre a universidade.”
Joana sentiu-se encurralada, presa entre a verdade que poderia destruir a sua vida cuidadosamente construída e a crescente curiosidade no olhar de Eduardo. Dona Albuquerque observava a troca com interesse, o seu sorriso sábio sugerindo que percebia mais do que qualquer um deles imaginava.
“Universidade de Lisboa,” disse Joana finalmente, a palavra soando como uma confissão. “Estudei na Universidade de Lisboa.”
A expressão de Eduardo passou por várias emoções—surpresa, confusão e algo que poderia ser respeito. “A Universidade de Lisboa tem um excelente curso de linguística. O que a fez mudar de carreira?”
A pergunta inocente atingiu Joana como um golpe. Como explicar que não decidira nada? Que a sua carreira, a sua vida, o seu futuro tinham-lhe sido roubados pela pessoa em quem mais confiara? Que trabalhava como empregada de mesa não por escolha, mas porque era o único emprego que conseguira depois de a sua reputação ter sido sistematicamente destruE, enquanto o pôr-do-sol pintava o rio Tejo de dourado, Joana e Eduardo caminharam de mãos dadas, sabendo que a vida—como os vinhos finos que serviam—melhora com o tempo e a verdade.