Cura pelo Coração

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Na sala de descanso, pairou um cheiro denso, doce-amargo de café queimado e nervos à flor da pele. O ar estava espesso como melaço, saturado de madrugadas em claro, dos alarmes monótonos dos monitores e do silêncio desesperado. Fernanda Sousa, uma mulher de corpo robusto como um bom tacho de cobre e um rosto onde a severidade já se instalara como moradora fixa, mexia lentamente o terceiro açúcar da noite na sua caneca enorme. Seus dedos, acostumados à precisão das agulhas e soros, moviam-se como máquinas.

— Em dez anos nesta cirurgia, pensei que já tinha visto tudo — murmurou para o ar, sem olhar para a jovem auxiliar, Isabel. — Mas um cirurgião-chefe trazer a filha para o trabalho… Isso é novidade.

Isabel, cujos olhos ainda guardavam o brilho recém-saído da escola de enfermagem e cujo coração não endurecera pelo cinismo, suspirou com pena. Seu avental parecia grande demais, alvo demais, como se ainda não lhe pertencesse.

— E para onde mais ele iria, dona Fernanda? A Catarina… — Isabel hesitou, procurando palavras delicadas. — …fez as malas e foi embora. Dizem que foi para aquele sócio de negócios. E a pequena Carlota ficou sozinha. O doutor Tomás está dividido entre a sala de cirurgia e a menina.

— Dividido — resmungou a enfermeira-chefe, mas sem ironia. Havia apenas cansaço e a sabedoria amarga de anos no ofício. — Um talento divino. Mãos de ouro. Salva quem os outros já desistiram. Mas na vida… na vida, é assim. Já aJá ia na terceira semana com a menina no hospital, mas graças a Deus a pequena era calma como um passarinho, sentava-se num cantinho a desenhar sem incomendar ninguém.

As duas mulheres calaram-se, olhando para o fundo turvo das chávenas, ambas a pensar no mesmo homem — o cirurgião Tomás Almeida, cujo nome ecoava pelos corredores do hospital envolto em lendas, especialmente desde que assumira o caso quase perdido da paciente do quarto sete.

— E a milionária? Continua na mesma? — sussurrou Isabel, baixando a voz como se temesse perturbar o frágil equilíbrio entre a vida e a morte.

— Na mesma. Estável, mas grave. Adriana… Um nome bonito, de rainha. Dizem que era uma mulher forte, cheia de vida até. Depois daquele ataque… Os outros médicos lavaram as mãos, mas o doutor Tomás agarrou-se a ela com unhas e dentes. Salvou-a. Arrancou-a das garras da morte. Agora não a larga, vigia-a como um cão fiel. Ainda espera que ela acorde.

Isabel espreitou timidamente para o corredor vazio naquela hora quieta antes do amanhecer. Num cantinho improvisado pelos funcionários mais bondosos, perto da receção, estava a pequena Carlota. Duas tranças escuras saltitavam-lhe nos ombros enquanto ela, franzindo a testa, desenhava no caderno com marcadores coloridos, alheia à agitação do hospital, aos gemidos abafados e ao ranger das macas.

— A Carlota é um anjo. Uma sabichona, não dá trabalho nenhum. Olhar para ela até dói no peito.

— E o marido dessa Adriana? — perguntou dona Fernanda, com um tom que mal disfarçava a desconfiança. — O Artur. Aparece, fica dez minutos com uma cara de pedra, como se estivesse numa reunião chata, e vai embora. Dizem que é mais novo que ela, uns dez anos. Não sabemos nada mais. É esquisito. Frio como gelo.

Nesse momento, a porta rangeu e apareceu na soleira a figura alta e um pouco curvada do doutor Tomás, de jaleco outrora impecável e agora amarrotado. A barba por fazer cobria-lhe as faces magras, mas os olhos, fundos de sono, ardiam com uma luz estranha e intensa.

— Dona Fernanda, Isabel — a voz dele, normalmente suave e firme, saiu rouca de cansaço, mas com um fio de aço. — Estejam preparadas. A nossa paciente do quarto sete… teve um ligeiro progresso. Vi as pálpebras dela mexerem.

Não esperou resposta, virou-se e saiu, os passos perdendo-se no corredor. As enfermeiras trocaram um olhar. O ar parecia carregado de eletricidade, de algo prestes a acontecer.

No cantinho da Carlota, escondido numa curva do corredor, via-se quase tudo sem ser notada. A menina, acabando de pintar um vestido roxo para a princesa do desenho, começou a rabiscar um cavaleiro quando um homem sentou pesadamente no banco em frente. Ela já o conhecia — era o tio que vinha ver a tia adormecida. Ele pegou no telemóvel e o rosto liso e bem cuidado dele contorceu-se numa careta de raiva.

— Quanto tempo mais vamos esperar?! — rosnou no telefone, num sussurro que parecia um silvo de cobra. — Não pago para esse paspalho estar a brincar de médico com ela! Ela devia ter… faz alguma coisa! Não vou esperar para sempre!

Carlota estremeceu e recuou, como se tivesse levado um golpe. Não entendeu tudo, mas o ódio na voz dele era tão forte que quase doía. E ela sabia — aquele tio mau estava a insultar o pai dela. O seu pai, que não dormia para salvar a tia. Uma dor quente subiu-lhe à garganta. O homem levantou-se de um salto e desapareceu na curva do corredor.

Mais tarde, quando as enfermeiras saíram para outras urgências, Carlota, de caderno apertado ao peito, aproximou-se da entreaberta porta do quarto sete. Queria ver a tal tia que deixava o tio mau tão furioso. A mulher na cama era pálida como os lençóis, envolvida em fios e tubos, como uma boneca maltratada. Mas para Carlota, ela parecia apenas muito cansada, a dormir um sono pesado. Como a mãe… quando a mãe ainda era mãe.

— Carlota, aqui não, querida — Isabel apareceu por trás e, com cuidado, levou-a de volta ao seu cantinho.

Enquanto isso, Adriana debatia-se num vazio negro e denso. Não era um sonho, era o nada. Não sentia o corpo, não sabia onde estava. A consciência dela era um grão de areia num mar infinito. Um medo primitivo envolvia-a. Onde estava Artur? O marido que jurara protegê-la de tudo? Porque não estava ali a segurar-lhe a mão?

Ela chamou por ele com toda a força da alma, mas só havia silêncio. Até que, no meio da escuridão, ouviu vozes. Um tom calmo de mulher e… uma criança. Uma voz fina e cristalina. Uma menina. Se havia crianças ali, aquele lugar não era só o mal. Era a vida. Ela precisava de voltar.

Com um esforço desumano, Adriana rasgou o véu da escuridão. A dor explodiu em cada fibra do seu corpo, mas ela abriu os olhos. Vultos brancos agitaram-se à sua volta. Tinha voltado.

Quando Artur chegou ao hospital no dia seguinte, foi recebido pelo doutor Tomás.

— Lamento muito — o médico baixou a voz, evitando o olhar dele. — O coração dela parou há uma hora. Não houve nada a fazer.

Artur entrou no quarto, aproximou-se da cama e, com um sorriso que gelou o sangue a quem visse, pegou no telefone.

— Querida! Sim, sou eu! — sussurrou, a voz trémula de júbilo. — Acabou! Ela morreu! Ouviste? Morreu! Finalmente livres!

Mal terminou a frase, deparou-se com o doutor Tomás na porta. Virou-se para a cama. Adriana estava sentada, o olhar incendiado de fúria, o seu telemóvel a gravar tudo.

A justiça veio depois, lenta mas certa. Artur foi preso. Adriana recuperou-se na mansão da família, com o doutor Tomás e Carlota ao seu lado. E numa tarde dourada, na varanda, o médico ajoelhou-se e pediu-a em casamento. Ela riu, chorou, e disse que já esperava há meses.

Carlota dançou de alegria, segurando o vestido da “nova mãe”. E ali, entre risos e planos para o futuro, os três encontraram o que nenhum deles julgara possível — paz. E família.

The end.

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