Quase não atendi o telefone naquela manhã de sexta-feira.
O nome de João a brilhar no ecrã paralisou-me—como ver um fantasma em plena luz do dia. Três anos tinham passado desde que ele partiu sem aviso, escolhendo outra mulher e outra vida a apenas alguns quarteirões de distância. Sem adeus. Sem explicação. Apenas… desapareceu.
Desta vez, porém, a voz dele soou diferente.
“Inês”, disse, num tom baixo, como se o arrependimento finalmente lhe tivesse pesado. “Tenho pensado… na Leonor. Quero vê-la. Quero corrigir as coisas.”
Falou sobre fins de semana juntos, compensar o tempo perdido, como nunca deixou de amá-la. Parte de mim quis desligar, fechar essa porta para sempre. Mas a outra parte—aquela que viu a Leonor adormecer abraçada ao ursinho que um dia chamou de Papá—não podia negar-lhe a oportunidade que tanto esperava.
Então disse que sim.
A Leonor ficou em êxtase. Arrumei a sua própria mala de dormir fora: pijamas brilhantes, bolachas de animais, o coelhinho de peluche já gasto e um desenho que dizia “Senti a tua falta, Papá”. Olhou para mim, sorrindo com aquela esperança infantil que ao mesmo tempo cura e parte o coração.
“Vou pedir-lhe para irmos comer panquecas e visitar o jardim zoológico!”, exclamou, radiante.
Sorri, obrigando-me a acreditar que isto era bom. Até curativo.
O sábado chegou com mensagens animadas—fotos da Leonor no baloiço, a comer algodão doce, a andar no carrossel. Pela primeira vez em anos, senti um lampejo de paz no peito.
Mas a paz pode ser enganadora.
No domingo à tarde, a minha irmã ligou. Nunca esquecerei o pânico na voz dela.
“Inês, vê o Instagram. Agora.”
“O que se passa?”, perguntei, já a abrir a aplicação.
“Ele casou-se. Hoje. A tua filha—ela esteve no casamento.”
Congelei.
Ali, no ecrã, estava o João, sorridente num fato impecável, ao lado de uma mulher de branco—a Catarina. E entre eles, a Leonor. Vestida com um vestido branco e rendado que eu nunca vira, a segurar um ramo de flores maior do que ela, com os olhos arregalados e uma postura rígida.
As minhas mãos ficaram geladas. A garganta apertou-se.
Liguei. Ninguém atendeu. Liguei outra vez. Caixa de voz. Outra vez.
Então, peguei no carro.
O local era uma quinta nos arredores de Lisboa. Rosas brancas enfeitavam a entrada. Champanhe fluía. Música tocava. O João rodopiava com a Catarina sob luzes cintilantes, enquanto os convidados brindavam ao “para sempre”.
E ali—sozinha num banco, longe do barulho—estava a Leonor. A tiara torta, o coelhinho de peluche apertado contra o peito.
Quando me viu, correu. “Mamã”, sussurrou, enterrando o rosto no meu casaco, “podemos ir para casa agora?”
Não disse nada. Apanhei-a ao colo e virei-me para sair. Foi então que a Catarina apareceu à minha frente, toda ostentação e falsidade.
“Espera!”, gorjeou. “Ainda não tiramos a foto de família!”
Olhei fixamente para ela.
“Ela não é um enfeite”, disse, a voz a tremer de raiva. “É uma criança. Não um acessório para a tua fantasia de redes sociais.”
O sorriso da Catarina não vacilou. “Acalma-te. Ela estava adorável. Só precisávamos de uma florzinha.”
Foi então que uma das madrinhas se aproximou, desconfortável.
“Ela planeou isto”, murmurou. “A Catarina disse que convenceria o João a ‘levar a miúda’ para as fotos do casamento ficarem perfeitas. Disse-nos que ias cair nessa.”
O mundo inclinou-se.
Não olhei para o João. Não gritei. Apenas levei a minha filha para o carro, protegendo-a de um salão cheio de estranhos que não mereciam conhecê-la.
Em casa, deitei-a na cama. Ela não chorou. Apenas segurou a minha mão e perguntou: “Mamã… sou mesmo a princesinha dele?”
Engoli as lágrimas.
“Não, minha querida. És a minha princesa. E nunca mais vou deixar que ninguém te use.”
De manhã, as fotos do casamento tinham desaparecido das redes sociais. O conto de fadas da Catarina desfez-se quando os amigos a deixaram de seguir em silêncio. Ninguém ligou. Nem mesmo o João.
Aquele fim de semana foi a última vez que ele viu a Leonor.
E talvez seja o melhor.
Porque algumas pessoas não voltam para te amar—voltam para te usar. E algumas mães não criam apenas os filhos—protegem-nos daqueles que deviam saber melhor.
Posso não ser perfeita. Errei pelo caminho. Mas nunca desisti. Nunca usei a minha filha para maquilar uma imagem ou vender uma mentira.
A Leonor vai crescer sabendo que o amor não se conquista ao ficar “adorável” numa foto de casamento. É algo que se dá livremente. Com força.
E quando olhar para trás, não vai lembrar-se de quem não ficou.
Vai lembrar-se de quem nunca saiu.