Era fim de tarde numa pequena mercearia nos arredores de Lisboa. O sol poente atravessava as vidraças empoeiradas enquanto Inês, uma menina de dez anos, esgueirava-se entre as prateleiras. Não estava ali para comprar como as outras pessoas. Vestia calças jeans desbotadas, curtas demais para seu corpo franzino, e uma camiseta com um botão faltando. Na mão, segurava uma mochila quase vazia, exceto por alguns papéis onde gostava de desenhar.
Seu olhar fixou-se no refrigerador. Garrafas de leite alinhavam-se perfeitas, com gotas de condensação escorrendo pelo plástico. O coração de Inês acelerou. Em casa, seus irmãos gémeos, Miguel e Tomás, de apenas um ano, choravam desde manhã. A mãe, Sofia Mendes, saíra à procura de bicos como empregada de mesa, mas o dinheiro já não chegava. O frigorífico estava quase vazio – só uma lata de atum e meio pão amanhecido.
Inês sabia o que tinha de fazer. Agarrou uma garrafa pequena e enfiou-a na mochila, rezando para ninguém notar. Dirigiu-se à saída, as mãos suadas de nervosismo. Mas ao chegar à porta, uma voz áspera a fez estacar.
“Ei! O que pensas que estás a fazer?” Era o senhor Rui, o gerente. Um homem corpulento de cinquenta anos, com óculos grossos e fama de mal-humorado no bairro. Arrancou-lhe a mochila e puxou a garrafa de leite.
“Isto não é teu, pois não?” rosnou. Os clientes viraram-se. Uns murmuravam, outros abanavam a cabeça com pena ou reprovação. O rosto de Inês ardia.
“Eu… só precisava para os meus irmãoszinhos”, gaguejou, a voz trémula.
O rosto do senhor Rui manteve-se duro. “Roubar é roubar. Fora daqui! E não voltes. Vou ligar à tua mãe.” Devolveu a garrafa à prateleira e empurrou Inês para a rua.
Lágrimas escorreram-lhe pela face. “Por favor, senhor Rui… eles são bebés. Têm fome…”
Mas o gerente não mostrou compaixão. Fechou a porta de vidro com estrondo. Inês ficou no passeio, a olhar para o chão. O estômago doía-lhe menos de fome do que de vergonha.
Enxugou as lágrimas com a manga, quando um carro preto e lustroso estacionou à frente. Dele saiu um homem alto, de quarenta anos, com um fato impecável. Sapatos que brilhavam ao sol. Todos o reconheceram: Vasco Monteiro, um milionário conhecido em Portugal, dono de uma cadeia de hotéis. A última pessoa que se esperava ver naquela mercearia humilde.
Inês congelou. O olhar de Vasco saltou da menina assustada para o gerente irritado lá dentro. Algo naquela cena fez-no-lo hesitar. E nos minutos seguintes, fez o que deixou todos sem palavras.
Vasco Monteiro crescera num bairro social, embora poucos soubessem. Perdera o pai cedo, e a mãe trabalhava em dois empregos para pôr comida na mesa. A imagem de Inês – magrinha, assustada, com a mochila gasta – tocou-o fundo.
Entrou calmamente na loja, e sua presença impôs silêncio imediato.
“O que se passa aqui?” perguntou, voz firme mas contida.
O senhor Rui endireitou-se, nervoso. “Sr. Monteiro… esta miúda foi apanhada a roubar. Ia chamar os pais dela.”
Vasco olhou para Inês, depois para a garrafa na prateleira. “E o que é que ela roubou?”
“Uma garrafa de leite. Diz que é para os irmãos.”
O olhar do milionário suavizou-se. Pegou na garrafa e virou-se para o gerente.
“Quanto custa?”
“Dois euros e cinquenta”, murmurou o senhor Rui.
Vasco tirou uma nota de cem euros da carteira e deixou-a no balcão.
“Acho que isto dá para esta garrafa e mais quarenta.” O tom não era zangado, mas carregava autoridade inquestionável.
O silêncio caiu sobre a loja. Clientes sussurravam, impressionados. Os olhos de Inês arregalaram-se; o corpinho tremia entre alívio e incredulidade.
“Senhor, eu não queria…”, começou, mas Vasco interrompeu-a gentilmente:
“Não tens de me explicar nada. Alimentar os teus irmãos não é crime.”
O senhor Rui corou. Não ousou replicar. Vasco agachou-se para ficar à altura de Inês.
“Como te chamas?”
“Inês”, sussurrou ela.
“Então, Inês. Vamos levar este leite aos teus irmãos, está bem?” Estendeu-lhe a garrafa e apontou para a rua. “Mostra-nos o caminho.”
Inês fitou-o com desconfiança. Nenhum adulto fora tão gentil com ela – não desde que o pai morrera num acidente dois anos antes. Acenou lentamente.
Saíram juntos. O motorista de Vasco arqueou uma sobrancelha, mas nada disse. Inês guiou-os por passeios rachados, passando por casas com tinta descascada, até ao seu pequeno apartamento alugado.
Quando Sofia abriu a porta – pálida e exausta – congelou ao ver a filha ao lado de Vasco Monteiro. Inês correu para a cozinha com o leite, enchendo duas mamãs para os gémeos chorosos. Os bebés acalmaram-se quase de imediato, quando o leite morno lhes tocou os lábios.
Vasco ficou na entrada, observando em silêncio. No ar pairEnquanto os bebés adormeciam saciados, Vasco olhou para Sofia e disse num tom que misturava firmeza e gentileza: “Amanhã a minha equipa virá cá com comida e começaremos a tratar da vossa situação, porque nenhuma criança deve passar fome nesta cidade”.