Hoje foi um dia que nunca vou esquecer. Ainda sinto o frio do banco de metal da escola contra as minhas pernas, mesmo agora, sentada na minha cama, a escrever estas palavras.
Vi as costas da Dona Margarida desaparecerem no escritório, a porta pesada fechando-se com um clique que soou terrivelmente final. O silêncio que se instalou era diferente desta vez—mais denso, mais pesado.
Fiquei sozinha.
O senhor Manuel, o porteiro noturno, saiu pouco depois, empurrando o carrinho do lixo. Acenou-me com um sorriso triste, e eu tentei devolver o gesto, mas o meu braço parecia feito de chumbo. Ele saiu pela porta lateral, e ouvi o barulho da chave a girar lá fora.
Eu era oficialmente a última pessoa na Escola Básica D. João II. Toda a gente se tinha ido embora. Até a senhora simpática do escritório que tentava encontrar alguém—qualquer um—que se lembrasse de mim.
Dobrei os joelhos contra o peito, abraçando-os. O banco estava gelado, o calor do dia já se tinha dissipado, substituído por uma brisa fria que cheirava a pó e escape de carros. Os reflexos alongados no recreio desapareceram, mergulhando tudo numa escuridão absoluta, quebrada apenas pela luz fraca e zumbidora do candeeiro por cima de mim.
Puxei a mochila para o colo, as minhas mãos geladas a abrir o fecho com dificuldade. Tirei de lá a fotografia. Estava dobrada em quatro, as marcas já brancas de tanto a abrir e fechar.
Era do churrasco de despedida do meu pai, há três meses.
O meu pai, o Miguel, estava ali, alto e orgulhoso, de uniforme militar, com um sorriso tão grande que fazia os olhos ficarem cheios de linhas. Tinha o braço em volta do tio Rui, que era ainda mais alto e largo do que ele, com um sorriso enorme por baixo de uma barba preta e espessa. Do outro lado estava o tio Zé, magro e sério, mas dava para ver a felicidade nos seus olhos. Atrás deles, mais de vinte homens, todos de coletes de couro, abraçados, em frente a uma fila de motas brilhantes.
Pareciam durões. Mas eu lembro-me daquele dia.
Lembro-me do tio Rui a pôr-me na mota do meu pai, as suas mãos calejadas a segurarem-me com cuidado. *”És natural, miúda,”* disse, com uma voz grave que parecia o barulho das pedras a rolar. O tio Zé ensinou-me um cumprimento secreto, e o tio Cobra mostrou-me a águia pintada no depósito da sua mota.
Eles eram a família do meu pai. E ele fez-lhes uma promessa. *”Tomem conta da minha menina,”* disse, com a voz grossa de emoção.
*”Como se fosse nossa, irmão,”* o tio Rui prometeu, abraçando o meu pai com tanta força que o levantou do chão. *”Tu fazes o que tens a fazer. Nós tratamos dela.”*
Apertei a fotografia. E se eles se esqueceram? A Sandra esqueceu-se. Ela também prometeu. Até jurou no mindinho.
A barriga doía. Estava com fome, mas era mais do que isso. Era um vazio frio. A sensação de ter sido esquecida.
A porta do escritório abriu-se, fazendo-me dar um pulo.
A Dona Margarida estava ali, a luz por trás dela iluminando-lhe o rosto. Não conseguia perceber a sua expressão. O meu coração acelerou.
*”Inês,”* disse, com a voz suave.
Não consegui falar. Só a olhei, preparada para ouvir: *”Não conseguimos contactar ninguém, querida. Vamos ter de chamar a Segurança Social.”*
Ela ajoelhou-se à minha frente, mesmo no chão frio de cimento. Os joelhos fizeram um estalo. Respirou fundo. O seu rosto já não parecia preocupado—era outra coisa, algo que não conseguia descrever.
*”Inês,”* repetiu. *”Então… encontrei alguém.”*
O meu coração parou.
*”Um homem chamado Rui?”*
O mundo, que tinha sido cinzento e frio, explodiu de cor.
*”O tio Rui?”* soltei, o nome a sair da minha boca como um balão a estourar.
Um sorriso pequeno e trémulo apareceu nos lábios da Dona Margarida. *”Acho que sim. Ele pareceu… muito preocupado, querida. Muito… decidido.”*
Ela parecia procurar a palavra certa.
*”Quando eu disse o teu nome e que estavas sozinha, ele ficou em silêncio um longo momento. Depois disse, muito claramente: ‘Estamos a caminho. Não a deixes sair da tua vista. Chegamos em quinze minutos.'”*
Quinze minutos.
*”Ele… ele lembrou-se de mim?”* perguntei, as lágrimas a turvarem a luz amarela sobre a sua cabeça.
*”Oh, querida,”* disse ela, a voz também grossa. *”Ele lembra-se perfeitamente de ti. Perguntou se tinhas magoado. Se alguém te tinha magoado. Ele… pareceu muito zangado, Inês. Mas não contigo. Nem um pouco. Disse: ‘Diz à miúda que os tios estão a chegar.'”*
*Miúda.*
O nome que o meu pai me dava. O nome que ele lhes ensinou.
Eu não tinha sido esquecida. Não tinha sido esquecida. Eu era a *miúda.*
O alívio foi tão grande que me tirou o ar. Soltei um soluço que nem sabia que estava a guardar e atirei-me para os braços da Dona Margarida. Ela abraçou-me com força, a mão a acariciar as minhas costas.
*”Eles estão a chegar, anjinho,”* murmurou no meu cabelo. *”Estão a vir.”*
Esperámos. Os quinze minutos pareceram outra hora. A Dona Margarida deu-me as últimas fatias de maçã e uma barra de cereais que encontrou na gaveta. O açúcar fez as minhas mãos pararem de tremer.
Ficámos sentadas no banco, debaixo da luz zumbidora.
*”Dona Margarida?”* perguntei, a voz pequena.
*”Sim, querida?”*
*”Porque… porque é que a Sandra se esquece de mim? É por minha causa?”*
Ela afastou-se para me olhar nos olhos, a expressão séria. *”Oh, não. Nunca, Inês. Isto nunca foi, nem será, culpa tua.”* Ajeitou-me o cabelo. *”Às vezes… os adultos perdem-se, anjinho. Ficam demasiado presos nos seus problemas, e esquecem-se do que é importante. É uma falha deles, não tua.”*
Tentei entender. Mas tudo o que sabia era que o homem mais importante da minha vida estava do outro lado do mundo, e a pessoa que devia substituí-lo… não o estava a fazer.
E depois, ouvi.
Primeiro, senti. Uma vibração no banco de metal debaixo de mim. *Zumm…*
*”O que é isso?”* perguntou a Dona Margarida, olhando em volta.
Eu levantei-me. Dava para sentir no chão, no cimento. Um zumbido baixo e distante. Como abelhas. Muitas abelhas.
Ficou mais alto.
O zumbido transformou-se num rugido. Um *RRRRUUUMMMBLE* profundo que fazia tremer o peito.
Eu conhecia aquele som. Conhecia-o na alma. Era o som dos churrascos do meu pai. Era o som da segurança.
*”*”São eles,”* sussurrei, os olhos a iluminarem-se ao ver as luzes a aparecer na rua escura, sabendo que finalmente nunca mais estaria sozinha.