A Dor do Silêncio: Quando o Golpe Vem Antes das Palavras

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Não foi a correia que mais doeu. Foi a frase antes do golpe. “Se tua mãe não tivesse morrido, eu nunca teria que carregar contigo”. O couro assobiou no ar. A pele se abriu sem fazer barulho. O menino não gritou, nem soltou uma lágrima. Só apertou os lábios como se já soubesse que a dor se sobrevive em silêncio.

Pedro tinha cinco anos. Cinco. E já sabia que há mães que não amam. E casas onde se aprende a não respirar muito forte. Naquela tarde, no estábulo, enquanto a égua velha batia o chão com o casco, uma sombra canina observava do portão com olhos escuros, quietos, olhos que já tinham visto guerras e que logo entrariam em batalha outra vez.

O vento da serra descia com um assobio seco naquela manhã no curral. A terra estava dura, rachada como os lábios do menino que arrastava o balde de água. Pedro tinha cinco anos, mas seus passos eram de alguém muito mais velho. Já tinha aprendido a andar sem fazer barulho, a respirar só quando ninguém olhava.

O balde estava quase vazio quando chegou ao bebedouro. Um cavalo o observava em silêncio. Estrela, com seu pelo manchado e os olhos cobertos por uma névoa suave. Nunca relinchava. Nunca dava coices. Só olhava. “Calma”, sussurrou Pedro, passando a mão aberta sobre seu lombo. “Se tu não falas, eu também não.” Um grito cortou o ar como um raio. “Outra vez atrasado, animal.”

Joana apareceu na porta do estábulo com o chicote na mão. Usava um vestido de linho limpo, passado, e uma flor no cabelo. De longe, parecia uma mulher respeitável. De perto, cheirava a vinagre e raiva contida. Pedro deixou o balde cair. A terra absorveu a água como uma boca sedenta. “Eu disse que os cavalos são alimentados antes do amanhecer. Ou será que tua mãe nem isso te ensinou antes de morrer como uma inútil?”

O menino não respondeu. Baixou a cabeça. O primeiro golpe cruzou suas costas como um chicote de gelo. O segundo veio mais baixo. Estrela deu um coice no chão. “Olha pra mim quando eu falo!” Mas Pedro só fechou os olhos. “Filho de ninguém. É o que és. Devias dormir no estábulo com os outros burros.”

Da janela da casa, Catarina observava. Tinha sete anos. Um laço rosa no cabelo e uma boneca nova nos braços. Sua mãe a adorava. A Joana tratava o menino como se fosse uma mancha que não saía com sabão. Naquela noite, enquanto a vila se recolhia entre orações e o badalar suave dos sinos, Pedro ficou acordado na palha. Não chorava. Já não sabia como.

Estrela aproximou-se da cerca e apoiou seu focinho na madeira podre que os separava. “Tu entendes, não é?” disse ele sem levantar a voz. “Tu sabes o que é sentir quando ninguém te quer ver.” O cavalo piscou devagar, como se respondesse.

Uma semana depois, um grupo de viaturas entrou pelo caminho poeirento da quinta. Carros com logótipos do governo, coletes fluorescentes, câmeras penduradas no pescoço. E entre eles, caminhando sem pressa, um velho cão de pelo acinzentado, focinho cansado. Olhos que já tinham visto mais do que qualquer humano aguentaria. Chamava-se Faísca.

Elena, a mulher que o acompanhava, era alta, morena, com sotaque do sul. Usava botas de couro curtido e uma pasta cheia de papéis. “Inspeção de rotina”, disse, sorrindo com gentileza. “Recebemos uma denúncia anónima.” Joana fingiu surpresa, abrindo os braços como quem oferece a casa. “Aqui não temos nada a esconder, menina. Talvez alguém nesta vila só queira causar problemas.”

Faísca não se interessou pelos cavalos nem pelas cabras. Caminhou direto para o curral dos fundos, onde Pedro varria entre estrume. O menino parou. O cO cão sentou-se diante do menino, pousando a cabeça cansada em seus joelhos, e naquele silêncio que só os que sofreram entendem, Pedro finalmente sentiu que alguém o via — e isso, por enquanto, era o suficiente.

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