**Diário Pessoal**
Hoje foi um daqueles dias que mudam tudo. O Dr. António Mendes, cirurgião no Hospital de Crianças de Santa Maria, em Lisboa, observava a filha, Inês, através do vidro da sala de fisioterapia. A menina, de cabelos loiros e olhos azuis, estava sentada numa cadeira especial. Com quase três anos, nunca tinha dado um único passo. Todos os especialistas em Lisboa e Porto davam o mesmo diagnóstico desanimador.
Senti um puxão suave no meu casaco branco. Ao olhar para baixo, vi um menino de uns quatro anos, cabelo castanho despenteado e roupas gastas.
“Doutor, o senhor é o pai da menina loira?”, perguntou ele, apontando para Inês.
Fiquei surpreso. Como é que aquele miúdo estava ali sozinho? Ia chamar segurança quando ele continuou:
“Eu posso ajudá-la a andar. Eu sei como.”
“Rapaz, não devias estar aqui sozinho. Onde estão os teus pais?”, perguntei, tentando manter a calma.
“Eu não tenho pais, doutor, mas sei coisas que podem ajudar a sua filha. Aprendi a cuidar da minha irmãzinha antes de ela… antes de ela partir.”
Havia uma seriedade no miúdo que me fez hesitar. Inês, que nunca reagia às sessões, virou-se para nós e esticou os bracinhos na nossa direção.
“Como te chamas?”, perguntei, agachando-me para ficar à sua altura.
“Chamo-me Tiago, doutor. Eu durmo naquele banco do jardim ali em frente ao hospital. Já faz dois meses. Todos os dias venho cá e vejo a sua filha pela janela.”
O meu coração apertou. Um menino tão novo, vivendo na rua, e ainda assim preocupado com a Inês.
“Tiago, o que é que sabes sobre ajudar crianças que não conseguem andar?”
“A minha irmãzinha nasceu assim também. A minha mãe ensinou-me exercícios especiais que a ajudaram. Ela até começou a mexer as pernas antes de… antes de partir.”
Senti um nó na garganta. Tinha tentado todos os tratamentos convencionais, gastado fortunas em especialistas internacionais, e nada resultara. O que tinha a perder?
“Dr. Mendes!”, a voz da fisioterapeuta, Ana, ecoou pelo corredor. “A sessão da Inês acabou. Ela não reagiu hoje também.”
“Ana, quero que conheças o Tiago. Ele… tem algumas ideias sobre exercícios para a Inês.”
A fisioterapeuta olhou para o menino com ceticismo.
“Doutor, com todo o respeito, um miúdo da rua não tem conhecimentos médicos para—”
“Por favor”, interrompeu Tiago. “Só cinco minutos. Se ela não responder, prometo que vou embora e nunca mais volto.”
Olhei para a Inês, que, pela primeira vez em meses, sorria e batia palmas para o Tiago.
“Cinco minutos”, concedi, “mas vou estar a observar cada movimento.”
Tiago entrou na sala e aproximou-se da Inês com cuidado. Ela olhou para ele com curiosidade, os olhos a brilhar de um jeito que eu não via há muito tempo.
“Olá, princesa”, disse ele suavemente. “Queres brincar comigo?”
Inês balbuciou uns sons e esticou as mãos. Tiago sentou-se no chão ao lado dela e começou a cantar uma música suave enquanto massageava os pés da menina.
“O que é que ele está a fazer?”, sussurrou a Ana.
“Parece… parece uma técnica de reflexologia”, respondi, surpreso. “Onde é que um miúdo de quatro anos aprendeu isso?”
Tiago continuou a cantar e a massagear, alternando entre os pés e as pernas da Inês. Para espanto de todos, ela começou a emitir sons de prazer, e as pernas, normalmente rígidas, pareciam mais relaxadas.
“A Inês nunca reagiu assim a nenhum tratamento”, murmurei, aproximando-me.
“Ela gosta de música”, explicou Tiago sem parar. “Todas as crianças gostam. A minha mãe dizia que a música acorda partes do corpo que estão a dormir.”
Pouco a pouco, algo extraordinário aconteceu. Inês mexeu o dedinho do pé esquerdo. Quase impercetível, mas eu, treinado para notar o mínimo sinal, vi.
“Ana, viste isso?”, perguntei.
“Pode ter sido um espasmo involuntário”, respondeu ela, mas a dúvida na voz era clara.
Tiago continuou mais uns minutos até a Inês bocejar, mostrando cansaço.
“Por hoje chega”, disse ele, levantando-se. “Ela ficou muito cansada.”
“Tiago”, chamei, quando ele se encaminhava para a porta, “onde é que aprendeste a fazer isso?”
“A minha mãe era enfermeira antes de ficar doente. Cuidava de crianças com necessidades especiais no hospital da nossa cidade. Quando a minha irmãzinha nasceu com problemas nas pernas, ela ensinou-me tudo para a ajudar.”
“E onde está a tua mãe agora?”
O rosto de Tiago escureceu. “Faleceu há três meses. Ficou muito doente e não melhorou. Depois disso, vim para cá porque ela falava sempre deste hospital. Dizia que tinha os melhores médicos.”
Senti um aperto no peito. O menino tinha perdido a mãe e ainda queria ajudar outras crianças.
“Tiago, onde é que estás a viver?”
“No jardim em frente ao hospital… num banco debaixo de uma árvore grande que me protege da chuva.”
“Isso não pode continuar. És apenas uma criança.”
“Eu desenrasco-me, doutor. E agora tenho uma razão para ficar—ajudar a Inês.”
Naquela noite, não consegui dormir. Pensei no menino sozinho no jardim e na reação única da Inês aos seus cuidados.
Na manhã seguinte, cheguei cedo e encontrei Tiago sentado no banco à espera.
“Bom dia, doutor”, cumprimentou com alegria.
“Tiago, vem comigo. Quero apresentar-te a alguém.”
Levei-o ao consultório da Dra. Leonor Rocha, uma neuropsiquiatra infantil respeitada.
“Leonor, este é o Tiago. Ontem, ele conseguiu uma reação da Inês que nenhum de nós alcançou.”
A Dra. Rocha, uma mulher de cabelo grisalho e olhos bondosos, observou-o com interesse.
“Conta-me sobre os exercícios que fizeste com a Inês.”
Ele explicou a técnica em detalhe, demonstrando os movimentos com as próprias mãos. Leonor ouviu atentamente, fazendo perguntas específicas.
“Isto é fascinante”, disse finalmente. “Tiago, acabaste de descrever uma forma de estimulação neurosensorial que só costuma ser conhecida por fisioterapeutas especializados. Onde é que a tua mãe aprendeu isto?”
“Ela falava de um médico chinês que veio dar um curso à nossa cidade. O Dr. Chen, acho eu. Ele ensinou exercícios que ajudavam crianças especiais.”
Leonor e eu trocámos um olhar. O Dr. Chen era uma referência mundial em neuroreabilitação pediátrica.
“Tiago”, perguntou Leonor com suavidade, “lembras-te do nome da cidade onde vivias com a tua mãe?”
“Foi em Aveiro. A minha mãe chamava-se Rosa Almeida. Trabalhava no hospital da cidade.”
Peguei no telefone e liguei para o hospital. Depois de algumas transferências, falei com a enfermeira-chefe.
“Rosa Almeida? Claro que me lembro dela—uma das melhores que já tivemos. Fez um curso internacional de neuroreabilitação em 2020 com o Dr. Chen. Ficámos devastados quando soubemos do seu falecimento. Ela deixou um menino, mas perdemos contacto.”
Desliguei com lágrimas nos olhos.
“Tiago, a tuaDepois de muitos anos, Inês tornou-se pediatra, Tiago especializou-se em reabilitação infantil, e os dois continuaram a transformar vidas, provando que o amor e a coragem podem superar qualquer obstáculo.